19.6.06

Moldura Humana

O GRITO

A mulher tem vestido um casaco de fato de treino com as cores da bandeira de Portugal. O tecido do tronco é vermelho, os braços verdes e o capuz amarelo. Mas não há aqui motivo para festa. A mulher tem a boca e as narinas muito abertas e, na ponta do braço direito em riste, o punho fechado, à excepção do indicador que sublinha a indignação. Tem o corpo, que parece franzino, ligeiramente inclinado para a direita (visto daqui, do lado de quem segura o jornal: DN, sábado, 17 de Julho de 2006, secção Sociedade, página19).

A foto, de Pedro Ferrari – Lusa, ilustra a notícia que leva por título “Avó e pai de Vanessa condenados a 18 e 14 anos e nove meses de prisão”. Para legenda, os editores do jornal escolheram a seguinte frase: “Afluência – Mais uma vez os moradores estiveram em peso na sala de audiências do Tribunal de S. João Novo para assistir à condenação dos seus antigos vizinhos”.

Do lado esquerdo da mulher com o casaco-bandeira (ainda na perspectiva do leitor) está uma mulher gorda, a quem uma blusa de alças com riscas horizontais faz ainda mais gorda. Também tem a boca aberta mas num jeito de falta de ar, olhos cravados na lente do fotógrafo. Do outro lado da mulher-bandeira está uma mulher mais nova com uma camisola igualmente às riscas a deixar surgir a barriga, logo acima dos jeans. Tem a cabeça de lado, a boca aberta, deixando ver a fileira dos dentes de baixo. Os olhos estão fechados e o braço direito ligeiramente erguido acima da cabeça, de modos que parece dançar. A fechar o friso principal da indignação, outra mulher larga, com uma blusa preta de manga curta e um fio dourado com duas medalhas a pular, imóveis, sobre o peito XXXL. Também tem a boca escancarada, num esforço que lhe enruga a testa, mas os olhos estão cravados na mulher-bandeira, como quem grita ao desafio.

Em segundo plano há outras pessoas, homens e mulheres. Um aponta, outro sorri, aquela faz uma careta misteriosa, mais sorrisos, lá no fundo. Espectadores, participantes numa novela da vida real, “moradores em peso” para assistir e comentar. Acredito que alguns, de forma genuína, queiram demonstrar público repúdio pela morte da criança. Estou convencido que outros teriam optado pela final do “Dança Comigo”, no Campo Pequeno, se pudessem escolher.

Sobram os gritos, aqui num silêncio de papel, e algumas perguntas, em rodapé. Porque gritamos nós? O que nos faz expulsar o ar com tal ribombância de cordas vocais? Qual foi a última vez que gritaste, a plenos pulmões? Porquê?

3 comentários:

PB disse...

E o encontro a 3 e a 6?

j disse...

Nós, ao espelho, daqueles da Feira Popular, lembram-se?

j disse...

Rimos, claro! Enquanto pudermos.