30.4.06

Fio Invisível Com Curto-Circuito

Se já não há Valentim (tadinho), haja pois Valentino!

Viagem na Minha Terra

Eça escreve um romance de 700 páginas sobre isto: a choldra. Chama-lhe Os Maias, mas podia ser Os Portugueses. Antes dele e depois dele, muitas mais páginas sobre isto. São as raízes próximas ou longínquas de Um Pouco Mais Pequeno Que o Indiana, o filme incómodo de Blaufuks. Lembro aqui algumas dessas raízes; podia referir Gil Vicente ou Sá de Miranda, mas passo directamente a Camões: "(...) a pátria (...) que está metida / No gosto da cobiça e na rudeza / Dhua austera, apagada e vil tristeza." (Os Lusíadas, X, 145). Podia recordar Garrett e As Viagens na Minha Terra (Blaufuks é um continuador evidente do poeta romântico: a viagem como forma de reconhecimento do estado de decadência do país), Camilo ou António Nobre. Mas avanço directamente para Pessoa e para "Este fulgor baço da terra / Que é Portugal a entristecer", no qual "Tudo é incerto e derradeiro. / Tudo é disperso, nada é inteiro. / Ó Portugal, hoje és nevoeiro... " (Mensagem, "Nevoeiro"). Sim, Portugal: questão que temos connosco mesmos, como disse O'Neill, "meu remorso de todos nós...": "ó Portugal, se fosses só três sílabas / de plástico, que era mais barato!" (Poesias Completas, p. 227). Mas, feliz ou infelizmente, não é apenas isso, três sílabas. É um país desejado, um país que parece que não gosta de nós, um país que parece que queremos destruir, destruindo-nos. Como disse Al Berto num belíssimo livro final, Horto de Incêndio: "desejaste um país de silêncio / de chuvas salgadas - sem caminhos nem sonhos // tiveste um país sombrio / onde a realidade devorou o delírio e / ficou desabitado - este país nocturno que geme / contra a solidão do corpo" (p. 43). Uma terra de assassinos, em que a arma do crime é a própria vítima. Assim o diz Joaquim Manuel Magalhães: "Assim armado o país. / As gentes em catástrofe deslocam-se, / deixam por testemunho o abandono e a inépcia. / Uma a uma, uma paisagem é trucidada. / Inchou a autarquias o país. / Atravessam-no a miséria e algum dinheiro / insolentes. Um assassino / espreita outro assassino." (Alta Noite Em Alta Fraga, p. 80). Perante isto, que fazer? Resistir, escrever, acreditar, lembrar a beleza que ainda há. E, apesar de tudo, contra tudo, amar este país até ao fim: "Portugal / gostava de te beijar muito apaixonadamente / na boca" (Jorge de Sousa Braga, in O Poeta Nu).

Violeta



(foto de C., Abril 2006)

A outra rapariga cá de casa.

29.4.06

Sobre The Workingman's Death (Michael Glawogger, 2005)

Olhar e Ver. Há uma diferença entre olhar e ver. Olhar é passar os olhos por. Ver é ir além da superfície, e tentar compreender. MegaCities é um filme sobre a velocidade de olhar, The Workingman's Death é um filme sobre a lentidão de ver. Se no primeiro somos atordoados pela vertigem das imagens e das histórias, no segundo a câmara concentra-se demoradamente nas pessoas que mostra, dá-lhes a palavra, regista a dureza mas também a linha monótona da rotina do trabalho, mesmo o mais perigoso ou cruel. MegaCities é um filme sôfrego, The Workingman's... é um filme paciente. E quase perfeito nessa sua paciência.
Deambular e parar. Tal como MegaCities, o filme de ontem assenta na ideia de um descentramento do olhar europeu. Sair para conhecer o mundo. Encontrar outros territórios físicos, claro, mas essencialmente culturais e humanos. Talvez uma linha de diferenciação entre os dois filmes também seja essa: enquanto MegaCities se interessa primeiro pelo território físico (a imensa cidade) e só depois mostra alguns dos seus habitantes e sobreviventes, The Workingman's... parece-me colocar os homens antes dos lugares, sem que isto signifique uma minimização destes. Comparem-se os títulos e veja-se o que predomina em ambos: num, as megacidades; no outro, os homens de trabalho. Pelo que, se em ambos encontramos um processo idêntico de deambulação pelo mundo, os modos de fixação do olhar são algo distintos. Num caso, a câmara persegue as personagens quase sempre em movimento pelo espaço urbano (embora este conceito seja muito discutível para falar daquilo que vemos de Bombaim ou da Cidade do México), no outro temos pessoas numa relação relativamente estática com o espaço (mesmo no caso dos trabalhadores indonésios do enxofre, cuja acção é limitada à montanha, por imensa que seja). Uma mina, cúmulo do fechamento espacial. Um matadouro. Uma praia. Uma fábrica. E os homens presos a cada um desses espaços.
O indivíduo e o grupo. Outra diferença fundamental entre os dois filmes: MegaCities retrata sobretudo indivíduos que procuram sobreviver na megacidade; quando falamos do filme, lembramo-nos, principalmente, das histórias de Cassandra, do homem-camaleão dos corantes, do negro aldrabão de Nova Iorque. The Workingman's... é sobre o grupo, o colectivo: os "heróis" de Donbass; os "fantasmas" das montanhas de Java; os "leões" nigerianos; os "irmãos" de Gaddani; os operários chineses de olhos postos no "futuro". E aqui podemos sentir uma das afirmações políticas mais importantes do filme, a de que o homem se deve unir aos outros para ser mais forte. A união faz literalmente a força. E só em conjunto os homens poderão vencer o que os limita. Nisto, o filme de 2005 mostra-se claramente mais empenhado e afirmativo, também porque o tema que aborda, o trabalho e os trabalhadores, seja imediatamente reconhecido como político. Não só no sentido em que se denuncia determinadas condições sócio-laborais duríssimas, mas ainda no de mostrar o trabalho colectivo como forma de o homem vencer as adversidades que a sociedade ou a natureza lhe colocam. Se o trabalho é sofrimento (trabalho / tripalium) é também forma de afirmação da força, da coragem, da dignidade, da capacidade de invenção e de auto-superação do ser humano (embora essa união não esteja isenta de hierarquias ou conflitualidade, como todo o capítulo do matadouro de Port Hancourt mostra). E por aqui se pode fazer uma ligação produtiva ao trabalho de Sebastião Salgado.
A ironia e a seriedade. Mas se o olhar de Glawogger é eminentemente político, ele não deixa de se auto-relativizar, sobretudo através da presença constante da ironia e do humor. Assim, sendo verdade que estes operário trabalham duramente, também é certo que se divertem gozando com o trabalho. São vários esses momentos de gozo: a mulher do mineiro que o provoca dizendo-lhe que ele passa a vida deitado na mina quando ele se deseja deitar em casa para descansar; o "fantasma" engatatão que recebeu um beijo da turista francesa; os músicos que elogiam o carniceiro para dele obterem o devido pagamento; o fotógrafo de Kalashnikov em punho só para a fotografia; os operários chineses a elogiarem a tecnologia em contraste com a maquinaria desactualizada que utilizam, por sua vez em contraste com a da siderurgia de Duisburgo, entretanto encerrada e transformada em Parque de Diversões mais ou menos amorosas e clandestinas. No entanto, a ironia é sobretudo um modo de distanciação ideológica de Glawogger em relação à cegueira das ideologias: lembremos que o filme começa com uma remissão aos filmes de propaganda soviética e termina com citações de Mao. Ao fazê-lo, o realizador austríaco revela, indirectamente, o rídiculo do olhar ideológico e propagandístico sobre o trabalho, incapaz de mostrar os trabalhadores como homens, seres humanos normais, com sonhos e sono, desejosos de riso e de insulto (exemplo dos mineiros ucranianos), e não títeres ou "heróis do trabalho".
Trabalho e trabalho cinematográfico. Filme sobre homens e a sua luta pela sobrevivência nas condições mais extremas (ponto de continuidade e de retorno a MegaCities), The Workingman's... é uma obra épica de homenagem ao trabalho como forma de dignificação e, ao mesmo tempo, de escravização do homem (nesse sentido podem ser lidas as palavras de Faulkner, citadas no início: o homem não cessa de inventar maneiras de fazer mal a si e aos outros). Mas, implicitamente, este filme é também uma homenagem ao cinema como forma de revelação do mundo. Do nosso mundo. E a luz espessa e sombria que as suas imagens irradiam parece-me a metáfora desse processo de revelação. Um processo que é um trabalho e um compromisso, ético e estético, com aqueles trabalhadores que aceitaram ser filmados enquanto trabalhavam, mas igualmente com os trabalhadores que não estão no filme, sendo, todavia, por ele subtilmente evocados. Talvez se possa, então, dizer que este filme não é apenas sobre o trabalho como arte da sobrevivência; com efeito, ele é também sobre a arte, e particularmente o cinema, como trabalho de sobrevivência. Quer dizer, como forma de afirmação da vida e da possibilidade da esperança contra a negatividade e o absurdo. Afirmação do homem e do trabalho contra a morte. No fundo, a isso se resume, desde sempre, o Trabalho de todos os homens.

História de Abril Que Me Esqueci de Contar

Tarde do dia 24 de Abril. Sala de Professores: uma colega oferece-me um cravo, que eu deixo em cima de uma mesa enquanto saio para mais uma aula. Depois desta, regresso e o cravo já não está ali à minha espera. Alguém mais revolucionário do que eu considerou que o lugar de um cravo não é o tampo de uma mesa. Parece-me que teve razão. E fico a pensar se alguém mais revolucionário do que eu não terá sempre mais razão do que eu.

Fios (In)visíveis


Fios visíveis ligam António Maria Lisboa a Lisboa, cidade onde nasceu, escreveu e morreu com a idade de vinte e cinco anos. Mas que fios invisíveis ligarão Almada Negreiros a Almada, cidade onde não nasceu, não escreveu e não morreu?

Tenha Medo, Tenha Muito Medo!



Se o Daniel Blaufuks quiser fazer Um Pouco Mais Pequeno Que o Indiana 2, eu poderei indicar, como qualquer um de nós, alguns lugares interessantes a visitar e, eventualmente, a registar em imagens. Para já, uma sugestão apenas: os quatro novos parques de campismo a transferir da Costa de Caparica para a Mata dos Medos, na Fonte da Telha, uma área legalmente protegida. Com autorização de todas as entidades responsáveis, incluindo Câmara Municipal e o benemérito Ministério do Ambiente. Ou me engano muito, ou haverá fogos por aqui, no próximo Verão. Queres ligar a câmara, Daniel?

Post apagado

Apaguei aquele Post do Tadinho ...
estava de facto muito deslocado ...

28.4.06

Os dados na areia

- Já comprei os bilhetes.
- O que é que esperas da viagem?
- Sossego. O grau zero do stress. Tempo para pensar. Isolamento. Ausência de referências e solicitações. Um vazio para me espreitar por dentro. Foi por isso que concordei com este destino: parece-me perfeito.
- Hesitaste?
- Claro! Como sempre. Quero ver o mundo, outras cidades, outros países. Pergunto-me sempre: por onde (re)começar, raios? Ruas, cafés, museus, jardins, rios, praças, sons, edifícios, pessoas. Mas, se fosse por aí, continuava a circundar-me, a adiar esta visita interior.
- Vai ser um retiro zen, portanto.
- (Risos) Espero que seja suficientemente tranquilo.
- Não estarás a colocar muito alto a fasquia das expectativas?
- Espero que não. Só quero ser mais genuíno, mais eu. Preciso de entender como é que posso fazer isso. Acho que esta viagem pode ajudar. Lembras-te daquele texto do Vergílio Ferreira que já coloquei aqui?

"Porque na cidade vive-se sempre na rua, mesmo que se esteja em casa. E o que existe é o ser-se em relação e não a sós connosco. (...)"

- Mas não vais sózinho. Isso não coloca em causa esse desejo de introspecção?
- Creio que não. Sei que a minha companheira de viagem também precisa de suspender a cadeia dos dias a fio e deitar os dados na areia molhada. Desejo que seja bom para os dois.

27.4.06

Fios invisíveis (outra vez)




Fios invisíveis ligam as imagens a cores dos filmes americanos de Bogart às imagens a preto e branco dos filmes europeus de Godard. E vice-versa. E outra vez vice-versa.

Fios Invisíveis
















Fios invisíveis ligam as imagens em movimento das telas de Manet às imagens fixas dos filmes de Mamet. E vice-versa. E, de novo, vice-versa.

Outra Parábola

Quando estão em casa, os Pais ficam loucos com os Filhos, com os seus gritos, lutas, correrias, birras e provocações. Mas quando os Filhos ficam, por uma noite, com os Avós (e não há gritos, lutas, correrias, birras e provocações), os Pais sentem o estranho vazio da casa vazia. E, depois de adormecerem, sonham com os gritos, lutas, correrias, birras e provocações dos Filhos que dormem, silenciosamente, na casa tão próxima e tão distante dos Avós.

O Filho Mais Novo

O Filho Mais Novo, sem o Pai dar por isso, risca com esferográfica azul a capa e corta com tesoura vermelha a contra-capa do livro Parábolas e Fragmentos, de Franz Kafka, acabado de comprar. Depois de repreender o Filho, o Pai, o representante da Lei, pensa que talvez esta parábola merecesse ser incluída na próxima edição do livro.

26.4.06

Vastas Emoções, Pensamentos (sempre) Imperfeitos

0. Gosto desta forma de diálogo: permite um maior aprofundamento das ideias, o que é difícil quando apenas conversamos. Mas, porque se trata de um diálogo à distância, ela também tem os seus inconvenientes, nomeadamente a impossibilidade de clarificarmos melhor, de imediato, o que sentimos e/ou pensamos (neste caso, sobre MegaCities). Por isso, gostaria apenas de precisar alguns pontos em que, aparentemente, divergimos nas nossas leituras do filme que vimos em companhia tão agradável. Vou seguir a ordem do teu texto, a fim de facilitar o meu esforço de clarificação e precisão das minhas ideias, dúvidas e emoções em relação ao que está em discussão.
1. MegaCities é um grande filme (ou documentário, ou obra de arte, ou...). Reafirmo isto, para excluir qualquer dúvida sobre o valor que, para mim, este trabalho do realizador austríaco tem. E, porque é um grande filme, suscita questões, inquieta-me, cria desassossego. É uma das maneiras de, subjectivamente, percebermos que estamos perante uma obra interpelante, tanto do ponto de vista formal, como ao nível da matéria que nos é mostrada. Uma obra complexa, que não se esgota numa análise só, que, depois de a pensarmos, continua a "exigir" ser pensada. Os meus textos, e os teus, são disso a melhor prova. Estamos a exercer os nossos direitos de espectadores. Estamos a tornar viva a obra. Tal como um livro só existe se for lido (isto é, discutido, analisado, problematizado, etc), um filme só ganha sentido se for visto e pensado, se merecer ser visto e pensado (e MegaCities está neste patamar, sem dúvida). Estamos, portanto, aqui, completamente de acordo.
2. MegaCities é um filme político, e não é possivel excluir o "discurso político da obra de arte". Estou a citar-te, e estou inteiramente de acordo. Aliás, digo-o duplamente no fim do primeiro post sobre as "Vastas emoções...": "nisto reside, para além da sua dimensão política (de denúncia da miséria e da sordidez da vida de milhões de pessoas), uma das questões mais perturbadoras do filme: precisamente, o problema, também político, da relação entre ilusão e realidade." Gostaria, por isso, de clarificar o que quis dizer quando falei de "discurso político", que o filme não é: um produto de propaganda que defende uma qualquer ideologia marcadamente política (neste caso, poderia ser um discurso do género: "reparem, o sistema capitalista está podre, produz miséria, o homem é explorado, etc"). O filme, felizmente, não faz isso: recusa, e bem, qualquer facilidade ideológica. O que não deixa de ser uma tomada de posição política. Filmar aquelas pessoas daquela maneira é, obviamente, uma tomada de posição política. Pelo que se deve concluir que, também aqui, estamos inegavelmente de acordo.
3. Mas, sem estarmos propriamente em desacordo (porque há aqui complexidade que se dá mal com dicotomias, como sublinhaste) seguimos linhas de juízo diferentes em relação a um ponto que desejo agora retomar. Eu acho que o filme corre riscos, no sentido em que arrisca, mas também no sentido em que pisa o risco da sua própria sustentação enquanto olhar documental sobre certas zonas do real. Vou ser mais específico: o filme arrisca e ganha a aposta, de forma assombrosa, nas duas primeiras partes; arrisca e ganha, de forma séria e irónica, na terceira parte; mas falha (embora seja um falhanço interessantíssimo) na quarta. E, para mim, falha nesta parte porque nela o realizador, que obviamente "não é o mau da fita" - não o digo, nem o penso -, surge nela excessivamente como elemento problemático na relação filme/realidade. Estou a referir-me, em concreto, à sequência da rádio (a que foste sensível, por razões óbvias, durante a conversa com Glawogger), na qual percebemos que tudo começa com uma criação do próprio cineasta. Ficámos a saber na conversa, e não por meio do filme (ou seja, o filme não clarifica totalmente as suas linhas de actuação) que foi ele, Glawogger, que esteve no princípio do processo, sugerindo o programa; foi dele a ideia, a qual teve consequências na criação das situações que depois foram reconstituídas para serem filmadas; foi dele toda a montagem cinematográfica, ficcional, do diálogo em simultâneo entre o homem da rádio e os seus ouvintes (impossível, do ponto de vista da realidade). Numa palavra, ele criou o real que foi depois recriado no seu documentário. Pode falar-se, no fim desta sequência de processos, de autenticidade? Ou alguma coisa se perdeu? Eu penso que alguma coisa se perdeu. E foi a essa perda que fui sensível.
4. Questão de fundo colocada por ti: mostrar a realidade, por mais degradante que seja. Sim, completamente. Sim, estamos de acordo. Mas essa exposição não esgota as questões. É importante pensar os modos como se mostra (questionar esses modos). E, na verdade, isso é tão relevante como aquilo que se mostra: "procurar um olhar justo e equilibrado sobre a realidade que (se) documenta, tentando interferir o mínimo possível nessa realidade". Tu dizes isto em relação ao trabalho do repórter, mas penso ser perfeitamente justo dizê-lo em relação ao trabalho do realizador de documentários, mesmo que depois se diga que é um filme, ou uma obra de arte. Porque é esse o sentido do filme de Glawogger, mostrar o que está acontecer naqueles sítios. A questão é saber até que ponto aquilo que se mostra foi encenado ou manipulado pelo olhar que mostra. Por isso têm de ser colocadas questões, mesmo que elas fiquem sem resposta. E foi o que eu fiz em relação às imagens de Cassandra, ou dos cães, ou dos russos bêbedos. Perguntas, apenas. Manifestações de dúvida ou perplexidade. Porque, para além do olhar de Glawogger, há o olhar de Cassandra (o que sabemos desse olhar, de facto?) ou o olhar do russo que não quer ser humilhado (e, na verdade, sabemos alguma coisa sobre tal olhar?). Perguntas, manifestações de dúvida (e não somente perguntas retóricas) porque, por aqui, passa, parece-me, o problema que tu colocas por meio da citação do Pedro Rosa Mendes: respeito pelo outro, e pelo seu olhar. Isso que é possivel ver num dos momentos mais extraordinários do filme, num dos mais comoventes: o do homem a cores. Depois de mostrar a estranheza da sua situação e do seu trabalho, o realizador dá-lhe a palavra. E ele apropria-se dela. Mostra qual é o seu olhar (o seu tristíssimo drama de homem esgotado pelo trabalho, sem dinheiro para regressar à aldeia).
5. Vastas emoções, pensamentos imperfeitos é o título de um grande romance de Ruben Fonseca. Escolhi-o, de novo, porque me parece uma metáfora extraordinária daquilo que sinto e penso em relação a grande parte das imagens de MegaCities. Imagens que me provocam vastas emoções. E pensamentos imperfeitos. Mas que me permito partilhar contigo. Convosco. (Depois de muitas interrupções e do mais velho me ter apagado parte do texto e de ter deitado os dois e...).

Tele-Melguice ...

- Está?

- Está, estou a falar com o senhor Nuno?

- Sim...

- Sr. Nuno, aqui é da TMN, estamos a ligar para apresentar a promoção TMN
1.382 minutos, que oferece...

- Desculpe, interrompo, mas com quem estou a falar?

- O sr está a falar com Natália Bagulho da TMN. Eu estou a ligar para...

- Natália, desculpe-me, mas para minha segurança gostaria de conferir
alguns dados antes de continuar com a nossa conversa, pode ser?

- ...Sssssim, pode...

- A Natália trabalha em que área da TMN?

- Telemarketing Pró-Activo.

- E tem número de funcionária da TMN?

- Desculpe, mas não creio que essa informação seja necessária.

- Então terei que desligar, pois não estou seguro de estar realmente a
falar com uma funcionária da TMN.

- Mas eu posso garantir...

- Além disso, sempre que tento falar com a TMN sou obrigado a fornecer os
meus dados a uma data de interlocutores.

- Tudo bem, a minha matrícula é TMN-6696969-TPA.

- Só um momento enquanto verifico.

- ...??? (Dois minutos mais tarde) - Só mais um momento, por favor.

- ...??? (Cinco minutos mais) - Estou sim?

- Só mais um momento, por favor, estamos muito lentos hoje cá por casa.

- Mas, senhor... (Um minuto depois)

- Pronto, Natália, obrigado por ter aguardado. Qual é mesmo o assunto?

- Aqui é da TMN, estamos a ligar para oferecer a promoção TMN 1382 minutos,
pela qual o Sr. fala 1.300 minutos e ganha 82 minutos de bónus, além de
poder enviar 372 SMS totalmente grátis. O senhor estaria interessado, Sr.
Nuno?

- Natália, vou ter que transferir a sua ligação para a minha mulher porque
é ela quem decide sobre alteração de planos de telemóveis. Por favor, não
desligue, pois a sua chamada é muito importante para mim... (Pouso o
telemóvel em frente ao leitor de CD´s, coloco a música "Quero cheirar teu
bacalhau" a tocar em repeat mode e vou beber um cafézinho...)



Válido não só para a TMN: pode experimentar com a TV CABO, Clix, PT,
Cabovisão, etc...

Liberdade Vigiada

Trinta e dois anos depois de Abril, muitos desceram a Avenida, gritando: "Nem menos, nem mais, direitos iguais!". Tinham várias cores e sotaques e, a maioria, um ar sério. A liberdade é uma festa. Vigiada.


(fotos: j, Lx, 25 de Abril 2006)

Olhar o Mundo (algumas reflexões)

Os teus posts, LP, sobre MegaCities são muito estimulantes, confirmando que o filme é um desafio a pensar o modo como olhamos o mundo e as imagens do mundo. Sublinhas a indefinição de fronteiras entre documentário e ficção (uma questão que, pelo que percebi, é de grande actualidade no Festival Indie e, de uma forma geral, no debate entre profissionais e amadores desta área). Escreves que se trata de um filme, lembrando que o próprio autor fala em obra de arte, e não de um discurso político ou de uma reportagem. Quanto à possibilidade de ser uma reportagem, é questão relativamente pacífica; a encenação deve ser aí a absoluta excepção à regra, servindo apenas para reconstituir situações impossíveis de documentar e que, se for seguida a deontologia própria, tem de ser rigorosamente assinalada (e é aqui que a diferença com o trabalho de Glawogger fica marcada com um dos traços mais fortes) . Ainda assim, o mito da objectividade deixou há muito de ser assunto de debate, sabendo-se que o repórter só pode (e já não é pouco) procurar um olhar justo e equilibrado sobre a realidade que documenta, tentando interferir o mínimo possível nessa realidade. Já em relação à exclusão do discurso político da obra de arte não posso estar de acordo; só a escolha do tema já é, claramente, uma afirmação política. Não há (sobretudo aqui) olhares inocentes.


(foto: j, Lx, 25 de Abril 2006)

Ainda em relação à definição dos contornos do trabalho de reportagem - que talvez ajude a definir as fronteiras/limites do (deste) documentário e alguns pontos de contacto e antagonismo -, deixa-me citar o repórter/andarilho Pedro Rosa Mendes, na introdução ao livro "ilhas de fogo", Ed. ACEP, 2002:
"Sempre acreditei que o repórter é quem escreve a realidade partindo de uma convicção essencial: escrever sobre é escrever para. Escrever, pensando que o objecto da reportagem coincide - mesmo quando sabemos que isso é de todo improvável - com o seu primeiro leitor. Escrever, imaginando sempre que o fazemos cara-a-cara com quem está dentro do texto. Quando não é assim, em vez de reportagem, temos exotismo ou narcisismo. Abundam ambos actualmente. Matéria tóxica".
Substitui escrever por filmar, texto por filme, leitor por espectador e reportagem por documentário. Mesmo trabalhando em registos diferentes, quando o real é o ponto de partida e, nalguns casos, de chegada, há algo que pode ser semelhante, a começar pelo modo como respeitamos o outro.

Alguns casos que lembraste. Cassandra e o degradante espectáculo do corpo manipulável/manipulado. Quando falei em dignidade, referia-me ao olhar de Cassandra, fora do palco e, de certo modo, a um certo pudor que senti no modo como a câmara registou as incómodas cenas no bar. Escreves: "exploração voyeurista". Pergunto: não filmar, apaga a realidade? Não mostrar, torna-a menos degradante? O realizador contou-nos que Cassandra chorou quando viu o filme. Devia ter sido poupada a isso, como ser humano? E nós, continuávamos a desconhecer até que ponto é que o ser humano pode descer para sobreviver (ou ter um estranho prazer, no caso dos clientes do bar)? Claro que esta questão remete para outra, que citaste: "para que é que isto serve?" Na minha opinião, serve para nos tornarmos pessoas mais completas, mais conscientes, talvez melhor preparadas para a acção e para a relação com os outros. Outro caso, os combates dos cães. Sabemos que acontecem, todos os dias, na Cidade do México, em Lisboa, pelo mundo fora. Talvez aquele não tivesse ocorrido, sem a presença (e o pedido, certamente recompensado) da equipa de filmagens mas será justo dizer que o realizador é o mau da fita? Falas dos alcoólicos russos e da sua humilhação e colocas na mesa o binómio denúncia/exploração? Será que temos mesmo que escolher? Penso que o realizador denuncia (dá a conhecer) alguns casos extremos, explorando (tirando partido, elaborando um trabalho que lhe dá dinheiro) essa realidade. Mas falta, nesta complexa equação, uma outra e importante variável: o espectador!

Ver MegaCities deu-me prazer intelectual. Pela arte da filmagem, pela descoberta de novas realidades, de personagens mais espantosas que as de certas ficções. Deu-me prazer pelo desafio de interpretar e pensar o turbilhão, pela sinfonia desconcertante de sons (alguns raros/distantes). Ver MegaCities incomodou-me bastante mas deu-me muito prazer. Sou, por isso, cúmplice do realizador. E não estarei sózinho. Da plateia, na conversa final, alguém (um fã da Guerra das Estrelas?) perguntou a Michael Glawogger: para quando um MegaCities 2?

Duas notas finais.
Sobre a recompensa a quem aceitava ser filmado e sobre o carácter genuíno daquilo que foi dado a ver. É natural que, ao pagar (em dinheiro ou ajudando de alguma forma), se esteja a interferir no real, no ritmo, na naturalidade desse real. Ainda assim, não me parece que isso tenha levado a uma grande distorção .
Sobre o rótulo que deve ser colado a este objecto, MegaCities. Como todos os rótulos, será sempre redutor. Talvez seja mais correcto chamar-lhe filme e escrever, no final: qualquer semelhança entre o que aqui se viu e a realidade não é pura coincidência.

25.4.06

Tanto mar (Chico Buarque)

Sei que estás em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim

Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor do teu jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar

Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim

(Letra original,vetada pela censura; gravação editada apenas em Portugal, em 1975.)


(2ª Versão)

Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
E inda guardo, renitente
Um velho cravo para mim

Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente
Nalgum canto do jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar

Canta a primavera, pá
Cá estou carente
Manda novamente
Algum cheirinho de alecrim

Problemas de Montagem e Método (3): agora em versão MicroCity

- Então, como vão os miúdos?
- O costume. E os teus?
- Olha, o M. já toca melodias inteiras com o violino. Mas do que ele gosta mesmo é do hóquei...
- Pois. E o E., também tem talento para o violino?

- Agora! É um desastre. Mas adora ler poesia em voz alta.
- A sério? Mas isso é fixe, pá!
- Sim. Poemas do Manuel Alegre e da Sophia... aquele do dia inicial e limpo, qualquer coisa assim...
- Mas isso é fantástico!
- É. O problema é que o pai, armado em vaidoso, quis filmar o miúdo a dizer os poemas...
- Foi?

- Sim. E o rapaz, que diz tão bem os textos, com a câmara, olha, outro desastre. Nervoso, atabalhoado... Ficou tenso, engasgou-se. Devias ver, um autêntico desastre. Claro, o pai passou-se. E ainda foi pior!

- A câmara assusta, sabes...
- Pois assusta... Eu depois mando-te o mail com o "filme", Ok?
- Ok, manda lá o poeta...

(diálogo entre um professor de Português e uma professora de História, numa escola da Grande Lisboa, ontem à tarde; e sem "manipulação"...).

Luana na Avenida



(fotos: j, Lx, 25 de Abril de 2006)

Furúnculo


Furúnculo

O que é?

Infecção bacteriana da pele que causa a necrose
(destruição) do folículo pilosebáceo.
É causada pela bactéria estafilococos.

Problemas de Montagem e Método (2): ainda MegaCities

Retomemos o diálogo interrompido. E avancemos, sem demora, para o ponto que eu gostaria de colocar em cima da mesa. O problema da produção e da forma do filme e das suas sequências / imagens. O problema, político e ético, da relação entre ilusão e realidade.
Este filme é um documentário, nenhuma questão quanto a isso. E, como documentário, caracteriza-se "pelo compromisso com a exploração da realidade. Mas desta afirmativa não se deve deduzir que ele representa a realidade tal como ela é. O documentário, assim como a ficção, é uma representação parcial e subjectiva da realidade." Pelo que existe sempre "uma indefinição de fronteiras entre documentário e ficção" (citações retiradas do artigo "Documentário" da Wikipédia). Nenhuma dúvida quanto a isto, também. A questão é, por isso, outra. Concretamente, a questão é a de saber como se trabalha aqui essa indefinição de fronteiras entre documentar e ficcionar. Para mim, esta é a questão central do filme. Porque se trata, de facto, de um filme (o cineasta utilizou expressões como obra de arte e projecto de arte, se o meu inglês não me falha), e não de um discurso político ou de uma reportagem.
Neste sentido, compreendem-se a polémica e as reacções críticas ao filme. Porque há um problema ético por resolver, uma ambiguidade não esclarecida. Claro, mostrar parcelas da realidade que se quer documentar é uma decisão pessoal e subjectiva. Mas há uma linha de fronteira que, ao ser atravessada, coloca todo o projecto em risco de credibilidade. Vou tentar ser mais claro: filmar o que existe é, sempre, filmar a partir de um ponto de vista, mas a questão é saber se as imagens servem para mostrar o que existe (nascem dessa descoberta) ou servem para expor algo que previamente se conhece e se espera que aconteça para se poder "documentar". Não é por acaso que a parte do filme sobre Nova Iorque é a mais problemática, em termos de processos e de valor cinematográfico, das quatro. Em grande parte, é porque nela se dão a ver de forma mais clara todas estas questões.
Para mim (e para ti, pareceu-me), o capítulo nova-iorquino é o menos forte, ou o mais falhado, o que não significa que seja o menos interessante, pois é o que nos ajuda a compreender melhor as virtualidades e as debilidades do método de trabalho de Glawogger. É verdade: já conhecemos de ver nos filmes (ou de lá teres estado?) aquelas ruas, aquele ambiente. Mas, para além disso, nesse capítulo a encenação torna-se tão evidente que o filme ganha muito mais uma dimensão ficcional do que documental e, por isso, não tem a mesma força que vemos nas outras sequências (principalmente as de Bombaim e da Cidade do México). Por outro lado, o facto de ser apresentada como última parte leva o autor a querer explicitar o seu ponto de vista sobre todo o filme. Algo que nas outras sequências não é senão mostrado (e o espectador que interprete e lide com isso), aqui é dado como evidente, a saber: "este filme é sobre a sobrevivência na grande cidade". Como se o cineasta tivesse sentido na carne e no filme o problema das próprias cidades que filmou: o excesso de desordem e caos, e a necessidade de dar um sentido, uma linha de entendimento a esse caos. O problema é que a exposição do tema retira força e, digamos com aspas, "verdade" às imagens, como se o realizador já não estivesse a documentar (com tudo o que de ambíguo e subjectivo isso acarreta), mas a exibir provas (imagens) que fundamentam um ponto de vista prévio, o da temática da sobrevivência nas selvas das megacidades.
Momento extremo desta lógica: a sequência do quarto de hotel com o vigarista a fazer de si próprio (a representar como se fosse verdade) e a roubar o cliente homossexual (faz de conta) e toda a sequência da rádio, em que tudo começa com a sugestão de um programa sobre a temática da sobrevivência na megacity, sugestão do próprio realizador - não já um documentador / documentarista do real, mas o criador (o realizador) desse real. Ele filma a partir do que criou. Estamos, portanto, bem longe já da simples temática da influência que a presença de uma câmara exerce nos comportamentos dos indivíduos (que representam sempre um papel, mais ou menos consciente), e bem próximos da ideia de manipulação da realidade, quer dizer, do facto de a realidade que se quer documentar ser aquela que, precisamente, se criou. Ou seja, que não existia e que só passou a existir em função do documentário que se fez. Pelo que existem, aqui, questões políticas e éticas sérias e importantes.
Claro, mostrar a realidade é forçosamente, com uma certa perspectiva, mostrar parcelas da realidade: as 13 ou 14 horas de trabalho de um homem em 45 segundos. O filme é honesto, assume isso. Mas uma questão mais pertubadora é a de perguntar porque se mostram todas estas imagens. Para quê? (a pergunta da C., também no carro, que suscitou mais discussão, ainda que breve, entre nós, lembras-te?). Para mudar o mundo? Para agitar consciências? Daqui nasce mais uma pergunta: e os fins justificam os meios? Isto é, para documentar (?) a decadência e a sordidez das ruas de Nova Iorque, devo colocar homens a representar as suas vidas? A fingir o que são? E, pondo isto em relação com o resto do filme, como pensar todas as outras sequências? O que há de documental e de ficcional nelas? (Este filme é um documentário?)
É um filme, e é um documentário (como tu, aliás, disseste). Que coloca muitas questões, que desafia. Com sequências inesquecíveis, equívocas, ambíguas. Por exemplo, a de Cassandra: dignidade (foi a tua leitura) ou exploração voyeurista de um espectáculo degradante para homens e mulher? Por exemplo, o da luta de cães, de uma violência terrível e angustiante (o cineasta filmou o que aconteceu ou "manipulou" para que acontecesse e pudesse ser documentado?). Por exemplo, o dos alcoólicos russos: há um que passa o tempo a falar da humilhação que está a sofrer. Um cineasta que filma essa humilhação (com autorização das autoridades? dos humilhados?) denuncia ou é cúmplice da mesma ao explorá-la para a mostrar num filme seu? (pergunta extrema: denuncia-se ou (e?) explora-se a miséria que se mostra?). O filme está aí. Com as suas imagens, e as suas questões. Lidemos com elas.
Porque, de facto, "o absurdo é património da humanidade."

"Vastas Emoções, Pensamentos Imperfeitos" (mais um post sobre MegaCities)

0. Como prometido em post anterior, retomo um diálogo que ficou a meio (sabendo, de antemão, que tudo fica a meio).
1. MegaCities é uma provocação. Aquele murro bem aplicado na boca do estômago doméstico e mais ou menos (in)tranquilo. Um filme que não deixa espaço para o sossego. E não apenas pelo que mostra: os modos terríveis, ou inventivos, de sobreviver em quatro megaselvas urbanas do mundo contemporâneo. Não parece, de facto, razoável dizer que esta é uma obra apenas sobre a miséria, ou a violência, e as mil e uma maneiras de a fintar; ou sobre pessoas com nome próprio (e sonhos bem concretos) e rosto visível por debaixo das camadas de sujidade e infelicidade. Na verdade, há algo mais que deixa o espectador incapaz de indiferença. Quer dizer, a par do que é mostrado, há, no filme, uma questão incontornável, a de saber como lidar com o método de trabalho e de produção das suas imagens (o método do realizador) em diversas partes do filme. Numa palavra, não é possível pensar o conteúdo do filme sem pensarmos, igualmente, na sua forma de construção e apresentação ao espectador.
2. MegaCities apresenta sequências de imagens impressionantes. Em Bombaim: os operários que trabalham rotineiramente durante horas (que batem a chapa, que cosem camisas, que arrancam penas a frangos, etc); o homem dos corantes (arco-íris? camaleão?); os recolectores do lixo vendável nos canais imundos, etc.
Na Cidade do México: o cavalo branco no meio da neblina da megalixeira, como uma presença animal fantasmática, sugestão de que as leis daquele lugar são diferentes do mundo dos seres vivos ditos normais; as crianças e os pintaínhos, todos sem amparo, à procura de um quinhão de calor parental; o homem do lixo e a sua equipa de futebol; etc.
Em Moscovo: os cegos na fábrica de interruptores da luz; os leitores no metro (com ressonância wenderiana, a fazer lembrar os anjos de As Asas do Desejo); a criança que realiza os trabalhos de casa; a caserna / prisão para os moscovitas embriagados; etc.
Em Nova Iorque: sobretudo a sequência do "vendedor de ratas" a chutar e a tripar no automóvel em andamento e, depois, a falar sobre "ir na corrente", suando abundantemente, e acabando por "se ficar": paraísos artificiais? sono e cansaço extremos? overdose? (ou, apenas, encenação?).
3. Problemas de montagem e método (1). Como ligar e ordenar o caos, estas sequências de imagens? Glawogger, parece-me, usa três recursos: a) no fim da sequência, apaga-se a luz (a imagem vai ficando escura) e acende-se numa outra cidade, ou com outra "história" na mesma cidade (Cidade do México: sequência dos colectores de lixo, seguida da sequência do vendedor, das crianças e dos pintaínhos, por exemplo); b) através de uma espécie de capítulos, com subtítulos. Por exemplo: "Capítulo dos trabalhadores" - e vemos os "serralheiros" de Bombaim a bater e a cortar chapa, como na Idade Média, em paralelo com a condutora russa de pontes / gruas numa siderurgia de Moscovo; finalmente, c), através disso a que chamaste "inserts", j., ou seja, ligando-se, por ex., a produção de camisas em Bombaim à sua venda nas ruas de Nova Iorque.
O filme organiza-se, portanto, na forma de uma espécie de mosaico: peças que vão encaixando, não de forma contínua (não se conta uma história, apresentam-se fragmentos de diversas histórias), mas saltando de cidade para cidade ou de pessoa / personagem para pessoa / personagem. Ou, em vez de mosaico, puzzle: o filme fazendo-se por avanços em zonas diferentes do tabuleiro (as quatro cidades), com saídas e regressos a essas zonas, conforme as peças vão chegando às mãos de quem joga (o realizador). O filme cresce, assim, de forma desordenada, ou pelo menos parece, tal como as próprias megacidades que são a matéria-prima das imagens que o constituem. Reparaste, j., na tua dúvida, já no carro, sobre a linha condutora do filme? É a dúvida do espectador atordoado pela catadupa (o caos aparente) de imagens, histórias, rostos, e da velocidade a que eles surgem na obra. É o filme a continuar a lógica de expansão para fora, ou para dentro, das cidades que "retrata". Mas, ao contrário delas, o caos é, no filme, mais uma ilusão do que uma realidade. E nisto reside, para além da sua dimensão de afirmação política (de denúncia da miséria e da sordidez da vida de milhões de pessoas), uma das questões mais perturbadoras do filme: precisamente, o problema, também político, da relação entre ilusão e realidade. Mas, agora é muito tarde (3 da manhã) e eu tenho de interromper, de novo, este diálogo; espero que seja possível retomá-lo em breve. Com as minhas, ou as tuas palavras. Ou, quem sabe, as de outros.

The World at War - 1974

























Estou a rever este brilhante documentário
em 13 DVDs The World at War - 1974 que
já tinha visto em 1978 e uns anos mais tarde ...

25 de Abril


Pela primeira vez, os quatro na rua, na noite de 24 para 25 de Abril. Fomos ver a noite, as pessoas, o Fausto e o fogo de artifício. A noite, esplêndida. O povo, na marginal junto ao rio: passeando, falando, umas cervejas frescas, uma bifanas; os putos a correrem. Revejo velhos conhecidos: Augusto, Ladislau, vários outros. Perguntam por vocês. O espectáculo começa mas, com os rapazes cá de casa, pouco batidos em comemorações, o sono e o cansaço também. Não desistimos, descansamos no murete da avenida. Aguentamos firmes, embora mais longe do palco, até ao fim. Uns minutos antes da meia-noite, a música de Fausto e de José Afonso ("Grândola") cede o lugar ao discurso, breve, do Presidente da Câmara que recorda Abril e a sua generosidade, mas também torna presente o presente e o futuro (solidariedade com os trabalhadores despedidos da fábrica Alcoa, necessidade de um Hospital no concelho, o metro de superfície...). Mas o povo já só pensa no fogo-de-artifício, que aparece um pouco depois da chegada deste dia 25 de Abril, com estrondo e maravilhamento: Aaaaah! Que lindo! A festa acabou há pouco, os rapazes já estão na cama, mas a luta continua. Por nós, por eles. Por uma nova "terra da fraternidade".

24.4.06

25 d'Abril Sempre!

25 d'Abril Sempre! 25 d'Abril Sempre!
25 d'Abril Sempre! 25 d'Abril Sempre!
25 d'Abril Sempre! 25 d'Abril Sempre!
25 d'Abril Sempre! 25 d'Abril Sempre!
25 d'Abril Sempre! 25 d'Abril Sempre!
25 d'Abril Sempre! 25 d'Abril Sempre!
25 d'Abril Sempre! 25 d'Abril Sempre!
25 d'Abril Sempre! 25 d'Abril Sempre!
25 d'Abril Sempre! 25 d'Abril Sempre!
25 d'Abril Sempre! 25 d'Abril Sempre!
25 d'Abril Sempre! 25 d'Abril Sempre!
25 d'Abril Sempre! 25 d'Abril Sempre!
25 d'Abril Sempre! 25 d'Abril Sempre!
25 d'Abril Sempre! 25 d'Abril Sempre!
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25 d'Abril Sempre! 25 d'Abril Sempre!
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25 d'Abril Sempre! 25 d'Abril Sempre!
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25 d'Abril Sempre! 25 d'Abril Sempre!
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25 d'Abril Sempre! 25 d'Abril Sempre!
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25 d'Abril Sempre! 25 d'Abril Sempre!
25 d'Abril Sempre! 25 d'Abril Sempre!
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25 d'Abril Sempre! 25 d'Abril Sempre!
25 d'Abril Sempre! 25 d'Abril Sempre!
25 d'Abril Sempre! 25 d'Abril Sempre!
25 d'Abril Sempre! 25 d'Abril Sempre!
25 d'Abril Sempre! 25 d'Abril Sempre!
25 d'Abril Sempre! 25 d'Abril Sempre!
25 d'Abril Sempre! 25 d'Abril Sempre!

Sol

A muitas milhas de MegaCities. Quente, de afagar a nuca e fazer suar, mesmo de mangas arregaçadas. O prazer de andarilhar Lisboa, meter conversa com velhos aos postigos em Alfama, ciceroneado por uma jovem e simpática designer. Ontem à noite sonhei que ficava cego (foi muito inquietante). Esta tarde, bebi com gosto redobrado todas as (muitas) cores da cidade.

Notas Para Um diálogo Interrompido

(Mulher de pé e homem deitado, com corvos. Bombaim ao fundo. Foto de Sebastião Salgado).


(Cidade do México: casas, neblina, poluição atmosférica, luzes e montanhas ao longe. Foto de Pedro Coelho).

Faltam imagens de Moscovo e de Nova Yorque. Mas há-de faltar sempre alguma coisa. Isso não impede a vontade que se tem de escrever sobre as imagens. A vontade de pensar (sobre) as imagens. Pensar e escrever como processos interdependentes de quem procura compreender melhor as imagens. É, sem dúvida, uma procura, uma interrogação, uma tentativa: trazer alguma luz, se possível, às imagens, porque elas apresentam grandes sombras (são, em grande parte, imagens escuras, nocturnas, rápidas, fechadas). Tentar ver o que se vê nas imagens. E o que não se vê. Olhar a sua superfície, mas ir mais fundo. Atravessar a linha. Precisar de tempo para isso. E dizer, neste momento, apenas: notas breves para um diálogo interrompido. Antes de correr para a escola. Trabalhar. (Sobre)Viver. E sentir, bem viva, essa vontade de escrever e pensar (sobre) as imagens do filme de ontem à noite: Megacities, de Michael Glawogger. Filme de muitas imagens, e algumas palavras. A pedir mais palavras.

Enki Bilal

Apatia 2



"O absurdo é património da humanidade"
Michael Glawogger e Superbarrio, no filme/documentário Mega Cities, Áustria, 1998

23.4.06

Um maço de imbecis no jornal Expresso

Será que eles são todos patrocionados pela Tabaqueira?

"Muito pior do que fumar num restaurante é comer num McDonalds. Porque não os proíbem?"

Miguel Sousa Tavares

O rapaz continua a fazer que não percebe que ninguém está preocupado com o futuro cancro/enfizema dele. O que a gente quer é distância, amigo.

“O VÍCIO é um direito. Beber café e álcool, fumar tabaco e marijuana, jogar e até consumir heroína são direitos. Todos temos o direito de destruir o nosso corpo e as nossas vidas. São nossas.”

Daniel Oliveira

À vontade, amigo, evidentemente. Por mim, até pode atirar-se da ponte. Mas a minha vida é minha e eu não quero fumar do seu cigarro. Quer que lhe faça um desenho, sonso?

“Na marcha kitsch da Europa para o «progresso» os cafés foram sacrificados”

“No dia em que proibirem de fumar no Café Gijón, e matarem a velha senhora indigna, os bárbaros estarão finalmente onde querem estar, dentro das portas da cidade.

“Quando o fumo do cigarro desaparecer destes cafés estas damas desaparecerão também, e ainda usam a cigarreira e a boquilha com o aprumo das múmias.

Clara Ferreira Alves

Múmias? Está tudo dito, jóia. Porque é que se insiste em associar o fumo à cultura, como se não houvesse escritores, cineastas, pintores, músicos, etc que não fumam? E, misturando alhos com bugalhos, se baralha o jogo, sugerindo que a culpa dos cafés fecharem é das leis antitabagistas?

Apatia

Com a devida vénia, a crónica que Paulo Moura (um dos melhores repórteres da nossa geração) assina hoje no Público:

Telefonemas da Selva

Todas as semanas recebo telefonemas da selva. Até já programei o telemóvel com um toque especial para estas chamadas de números marroquinos. Vêm da região de Tânger ou de Ceuta, por vezes de Rabat ou Casablanca, outras vezes da Nigéria, Mali, Sudão.
Nem sempre atendo. Nem sempre estou disponível para esse mundo. Ontem foi Ezi, da floresta de Missnana, nos arredores de Tânger. Contou-me que um dos filhos está doente, com febre e diarreia, precisa de tratamento, mas não há forma de o levar para o hospital. Ezi e Charity têm dois bebés, porque pensaram que com eles seriam aceites na Europa. Mas não conseguiram o dinheiro para pagar às máfias que fazem a travessia. Já o tiveram, tentaram uma vez, mas o barco naufragou no Estreito de Gibraltar. Salvaram-se por milagre.
Há dois dias telefonou Gossom, contando que, depois de ter sido deportado cinco vezes para Oujda, no deserto entre Marrocos e a Argélia, preso, torturado, esfaqueado por assaltantes, os marroquinos conseguiram deportá-lo para a Nigéria.
A semana passada ligou Kinsley, que está em Ben Yunes, uma floresta perto de Ceuta. Queixou-se de que a Polícia marroquina está de novo a atacar os ilegais africanos, a um ritmo diário, com armas de fogo e cães treinados. Que os rouba, os mata, os deporta para o deserto.
Magdalene e Edith também costumam telefonar de Ben Yunes. Dizem que os polícias e grupos organizados de marroquinos fazem incursões no bosque para violarem as mulheres. Elas escondem-se em tocas de javali. Passam dias e noites imóveis, enregeladas, esfomeadas, à espera que o perigo passe.
Mais raramente telefona Miriam, que anda a pedir, com o seu bebé, pelas ruas de Tânger. Está há cinco anos em Marrocos, depois de um ano de viagem, desde a Nigéria, onde os pais a venderam à máfia, que prometeu levá-la para Espanha. Mendigou, prostituiu-se, viveu nas florestas de Tânger, Ceuta e Rabat, mas ainda não conseguiu um lugar nas "pateras" que atravessam o Estreito.
O mês passado telefonou Emmanuel, que vive em Missnana, se tornou pastor pentecostal e tem sida. Dedicou-se a ajudar os companheiros, ensinando-lhes que, segundo a Bíblia, Moisés também atravessou um mar para levar o seu povo à Terra Prometida. Emmanuel dedicou-se a encorajar os companheiros e esqueceu-se de si próprio.
Por toda a costa marroquina há florestas onde milhares de ilegais africanos esperam, em condições desumanas, a oportunidade de atravessar para a Europa. Não têm dinheiro, nem comida, nem medicamentos. Mas têm telemóveis.
Para eles, a comunicação é vital. E a informação. Estão em permanente contacto com as máfias, com as famílias, com os companheiros nas outras "estações" do percurso, com os amigos que chegaram à Europa e lhes poderão enviar dinheiro pela Western Union.
Eles sabem que os ministros dos Negócios Estrangeiros dos países do Sul da Europa e Norte de África estão hoje reunidos no Cairo para discutir a aproximação das margens do Mediterrâneo.
Em contraste com a apatia dos europeus, os milhares de clandestinos para quem o Mediterrâneo é um oceano imenso, intransponível, seguem com toda a atenção as conversas dos ministros.
São, doentes e esfomeados, agarrados aos seus telemóveis, uma estranha e gigantesca manifestação silenciosa a favor da globalização. Da globalização moral.

Zap

"Acho a televisão muito educativa. Sempre que alguém liga o aparelho, vou para outra divisão e leio um livro"
Groucho Marx, citado no jornal Público, a propósito da iniciativa da associação norte-americana Tv Turnoff Network, que organiza mais uma semana de abstinência televisiva.

Sobre este assunto, nem tanto ao mar nem tanto à terra. O que importa é não esquecer que o mesmo botão que liga permite desligar. O resto é a sempre complexa gestão do tempo, com tantas tarefas, solicitações e propostas quotidianas.

La Sagrada Familia



Neste filme chileno há mar, uma mãe que imagina coelhos, vinho tinto, erva, um filho com uma primeira namorada "mulher grande", esperma, sopa de abóbora com maçã, um pai babado (pela namorada do filho), ecstasy, uma namorada voluptuosa, lágrimas e um final eventualmente (in)feliz. É uma primeira longa-metragem (de Sebastian Campos) crua, com grandes planos, câmara ao ombro e diálogos sem polimento. A vida é assim e muitas famílias também.

Elefantes & Minotauros

Segundo Gus Van Sant em dois dias.
Dose dupla, e bem dura. Se Last Days parece ser sobre a auto-destruição individual, no que ela revela da doença social que contamina o indivíduo, Elephant (2003) lança sobre o espectador, sem contemplações, sinais terríveis que funcionam como sintomas de um mal profundo, colectivo. Uma pulsão de auto-destruição social, que se processa, necessariamente, através dos indivíduos - ilhas à deriva num oceano labiríntico, o qual pode esconder um Minotauro com rosto de adolescente no corredor mais próximo.

Sequência a meio do filme: enquanto um dos adolescentes toca piano (uma sonata de Beethoven), o outro joga, num computador, um jogo que cita directamente o filme anterior do realizador (Gerry, de 2002): figuras virtuais de homens perdidos num deserto branco, como acontecia com os dois protagonistas desse filme. Figuras que matam e morrem, tal como acontecerá com a personagem que joga no computador (um dos adolescentes assassinos). E como aconteceu, de facto, no Liceu de Columbine. Brutalmente. Realmente. Mesmo sabendo que o filme é uma ficção sobre factos, uma invenção, ou manipulação, desses factos, não é possível fazer desaparecer o seu efeito de realidade. Morreram 13 pessoas. E isto não é ficção.
De resto, uma cena com alguém ao piano a tocar uma sonata de um compositor alemão antes de perpretar um massacre não pode deixar de lembrar o tópico, tantas vezes retomado, do assassino que, durante o dia, pratica a carnificina e à noite, toca calma e docemente música clássica. Essa clássica ligação entre civilização e barbárie. Ou, se quisermos citar George Steiner (o mesmo dos cafés da Europa), a ligação lógica entre civilização e barbárie, a ideia de que a civilização, a nossa, se ergueu sobre o massacre e a destruição de homens e bens ao longo da História.
Elephant surge, pois, como um filme sobre as sombras da violência fascizante que espreitam por entre as brechas da sociedade contemporânea, e não só a americana. Afirmação, aliás, completamente transparente no filme: na manhã do assalto à escola, os dois jovens homicidas assistem a um programa televisivo sobre o regime e a propaganda hitlerianos. Uma das perguntas que fazem, enquanto assistem às imagens, é sobre a possibilidade de se comprarem, hoje, bandeiras nazis. A outra é a de saber se aquele, ali, é Hitler.
Falta-nos memória do passado, do horror do passado. Também por isso o horror continua presente no mundo que é o nosso; neste, no qual alguns adolescentes perguntam se é possível comprar bandeiras nazis porque nele parece que tudo se pode comprar, sem sairmos de casa. Basta um clique. Um mundo no qual se tem de perguntar se os elefantes ainda têm memória.

22.4.06

Tesoura de Plástico & Erva Verde



Era uma vez um homem que era corcunda e, por esse motivo, andava sempre dobrado para o chão. Enquanto os outros homens olhavam para a frente, para a linha do horizonte, o homem que era corcunda, enquanto caminhava pelas ruas da cidade, olhava sempre para baixo, para a limitada superfície de terra, ou de asfalto, ou de calçada, que aparecia logo à frente das pontas dos seus sapatos pretos. Assim, num primeiro olhar, o homem que era corcunda parecia estar em desvantagem em comparação com os outros homens, que tinham todos largos horizontes, grandes sonhos e imensos projectos. De facto, o homem que era corcunda não tinha largos horizontes, nem grandes sonhos, nem imensos projectos. Mas, porque passava a vida a olhar para o chão que todos os homens pisam, ele via o que os outros não viam: a erva verde e amarela dos jardins, as pedras irregulares dos passeios, as beatas dos cigarros, os buracos no alcatrão, as faixas de tinta das passadeiras para os peões. Era esse o seu segredo, e o seu trunfo. O seu triunfo: ver, encontrar descobrir, os que os outros não viam. Ou perdiam. Ou nem sonhavam que existisse. Dobrava-se, então, um pouco mais para a frente, até as mãos chegarem ao chão. E, enquanto os outros passavam, mais devagar ou a correr, para cima e para baixo, da esquerda para a direita, da direita para a esquerda, com os olhos postos nos grandes horizontes, com as suas cabeças cheias de grandes sonhos e imensos projectos, o homem que era corcunda, ainda mais inclinado para diante, apanhava do chão uma página de jornal rasgada, ou uma moeda de 5 cêntimos, ou uma tesoura de plástico cor de laranja, que alguma criança esquecera sobre a erva do jardim, depois de terminada a brincadeira do fim da tarde. "Pequenos sinais de vida, minúsculas provas da existência. Restos. Rastos de uma passagem." Pensando isto, o homem que era corcunda guardava tudo num dos bolsos e seguia, devagar, de olhos postos no chão, a caminho de casa. Que é o que fazem todos os homens: procuram, e seguem, incessantemente, mesmo que o não digam, ou saibam, esse caminho para casa. Nisso, corcundas ou não, todos os homens são muito parecidos. Tão parecidos que, no fundo, são quase iguais. Quase.

www.a-braços.com

O que me sobra de ti e o que levas de mim? Trocamos abraços e ésse éme ésses e-mails e até, de vez em quando, uma carta ou um postal. O que sabemos de nós, afinal? Não sabemos de tudo, de todo, mas eu sei que é bom trocarmos abraços e-mais.


Crash Into Me, Ana Ventura, 1999

Me and You and Everyone We Know (again)



Isto é da era digital? Imagina que a tua vida é um peixe vermelho dentro de um saco fechado com água, esquecido sobre o tejadilho de um carro, que entretanto se põe em movimento. O carro não pode parar, nem acelerar. Para que o saco não rebole para o asfalto, o veículo deve seguir sempre à mesma velocidade. Até quando?

Neste filme, que abriu o Indie Lisboa deste ano (em antestreia nacional), há um conjunto de personagens, histórias e situações desenhadas com delicadeza, humor e originalidade. É um filme que aborda as relações humanas, as armadilhas da comunicação, a sexualidade e a arte, com diálogos magníficos e excelentes interpretações. A não perder, quando chegar às salas.

Me and You and Everyone We Know

"Quero ser arrebatado. Quero que os meus filhos tenham poderes mágicos. Estou preparado para que me aconteçam coisas extraordinárias"

Richard (John Hawkes), in Me and You and Everyone We Know, Realiz. e com Miranda July, USA, 2005

Relatório Oficial, Com Imagem de Satélite




O Baptismo de Voo

"No dia 21 de Abril eu e os meus amigos fomos à base aérea do Montijo visitar a força aérea.
Depois de entrar na força aérea parámos para lanchar e tirar fotografias.
Em seguida, fomos ver cães a passarem obstáculos e, para surpresa, até vimos um cão a atacar uma pessoa.
E, embora estivesse programado irmos andar de avião, não fomos mas o que passou passou, por isso adorei ir à força aérea!"
(Autor: Oficial De Dia / Filho Mais Velho / Assinatura ilegível)

Cristalizar & Implodir


"- Olhe para isto. Veja como começa a cristalizar. Nitrato de celulose. A mesma coisa que usam na película dos filmes. Isto vai acabar por implodir. Cristalizar totalmente e implodir."
(in Last Days - Últimos Dias. Filme escrito e realizado por Gus Van Sant, inspirado nos últimos momentos da vida de Kurt Cobain. Com Michael Pitt, Lukas Haas, Asia Argento, Scott Green...).

Desejo, mapas & territórios


21.4.06

Marian Anderson / Richard Avedon (imagem & sons)


Vê como eu respiro. Como embalo o som a partir dos pulmões, como o modulo na traqueia e na garganta, como o fricciono com a língua e os dentes, como o perfumo com os lábios acesos. E vê como o som, invisível, atravessa o ar, deixando à mostra as suas linhas geométricas, que se escondem nos cantos da fotografia. Observa esse som a escorrer como uma corrente líquida, o som dos meus cabelos tocados pelos dedos claros da brisa de Abril, os sons a preto e branco da minha pele contra o fundo rumoroso da ausência. Olha bem, fixa o teu olhar: só assim poderás aceder às imagens dentro da imagem, ao interior da imagem, isso que escapa e mostra a minha respiração, a sucção do assombro, o colar de contas largas e entrecruzadas que são as contas da minha e da tua vida, voltas e mais voltas para chegarmos sempre ao mesmo lugar, ao mesmo fim. Por isso cantamos, gritamos, falamos, murmuramos, e fotografamos a luz de um rosto, de uma cidade (New York City) no seu tempo que já não é o nosso, embora existam quase todos os prédios e arranha-céus, e as ruas tenham os mesmos nomes e números. Vê enquanto olhas: eu respiro, inspiro, aspiro a ser escutada no meu silêncio. Ouve, então, como eu abro agora os olhos e cerro os lábios. É esse o meu convite: abrir os olhos, fechar os lábios. Vê neles o teu silêncio através do meu, escuta o teu olhar através do meu, bem abertos. Eu oiço daqui esse olhar, e vejo daqui o teu silêncio. Eu respiro, eu sou esse olhar e esse silêncio. E tu respiras, enquanto olhas, em silêncio. E nada mais vou dizer. A tua respiração é tudo o que há para dizer, tudo o que foi dito, tudo o que mostra que tudo fica algures perdido por dizer.

(Mais) Viagens de Sonho















Paris, Londres, Praga, Moscovo, Nova Yorque são cidades que me ocupam os sonhos, que eu desejo muito conhecer. Mas não me importo de começar por Beja, ou Vila Real, ou Bragança. Ou, de novo, mais uma vez, Lisboa.

Para as meninas de LP e JB da menina de PB

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numa das praias de Setúbal ... ;-)

Só um bocadinho um pouco antes disso...

OK

Viagens de Sonho













Há uns dias recebemos uma informação da Escola do filho mais velho sobre uma actividade extracurricular a realizar hoje: nada mais, nada menos que um Baptismo de Voo. Assim se podia ler no texto informativo distribuído a pais e encarregados de educação: "Os alunos partirão da escola e deslocar-se-ão a Lisboa ao aeroporto de Figo Maduro. Daí farão o trajecto em avião militar até à base Aérea do Montijo onde farão o reconhecimento desta base e finalmente regressarão à escola." Infelizmente, as palavras não chegam para colocar aviões no céu. E o verbo levantar apenas se aplicou ao acto de o rapaz se erguer da cama, porque, quanto ao outro, o de levantar voo - esqueçam, nada feito, falsa partida, acto falhado, fica para depois. Explicação técnica em primeira mão, e em discurso directo: "Porque a parte de baixo do avião tinha uns arames a segurar, mas não tinha uma parte branca como o resto do avião tinha. E, por isso, não foi possível andar." Uns arames a segurar? Uma parte branca que não há? Bom, acto falhado por acto falhado, antes em terra que no ar!

Podemos ir um pouquinho lá mais atrás?

Mudou mais do que tu te lembras!

O que mudou as nossas vidinhas ... quer queiram, quer não ...

Entre imagens e sons

Abeiro-me da ponte neste final de diasemana, com vontade de dois dedos de conversa. Roda chuchurumel na aparelhagem, depois de saltar da bolsa de tecido manufacturada por uma mulher das Beiras, abrindo caminho para um novo trabalho, em preparação (o encontro de gerações, sobre velhos ofícios). Os suplementos de sexta dos jornais alertam-nos para as tantas imagens indie que deslizam por seis écrans da Avenida de Roma.



Páro, Entre as Imagens de João Lopes, na 6ª do DN e observo o rosto e as mãos da pianista Mitsuko Uchida. Fotografias de Richard Avedon (1923-2004). "Como se uma fotografia pudesse ser o pressentimento de uma biografia. Da sua música e do seu silêncio".



Marian Anderson, contralto, New York City, June 30, 1955
Richard Avedon
Gelatin silver print; 97.5 x 109.2 cm
Collection of the artist

20.4.06

Abril de 1974 & Abril de 2006



Aula de Português, 11º Ano. Numa Escola Secundária da Grande Lisboa. O professor mostra um documentário sobre a vida e a obra de um grande escritor português, crítico feroz dos atavismos e atrasos da sociedade portuguesa do século XIX. As alunas sentam-se todas (sem excepção) de um lado da sala. Os alunos fazem o mesmo, mas em reverso (e igualmente sem excepção), no outro lado da sala. O professor fica sozinho no meio. O filme termina. A aula também termina. Quando começa a revolução?

Café Europa


A legenda da fotografia acima é: Fernando Pessoa, Raul Leal, António Botto e Augusto Ferreira Gomes "em flagrante delitro" no café. Mais precisamente no Café Restaurante Martinho da Arcada, em Lisboa, no Terreiro do Paço. Mas, desta vez, não é o poeta a razão da notícia, antes o Café. Leio na última página do Público de hoje que o "Martinho da Arcada, em Lisboa, foi escolhido como um dos Cafés da Europa e será palco das celebrações do Dia da Europa em Portugal, a 9 de Maio. (...)"
Trata-se de uma "iniciativa" da "presidência austríaca da União europeia e vai decorrer nos 25 países comunitários e nos candidatos Bulgária e Roménia". O objectivo é colocar os europeus a pensar e a conhecer melhor os desafios que o nosso continente enfrenta. "Sendo o café um local de relaxamento, convívio e debate, a Áustria decidiu reconstituir os "cafés vienenses" frequentados por políticos, artistas e intelectuais nos finais do século XIX, considerando ser o local ideal para fazer chegar a Europa aos cidadãos, elemento "essencial" para o sucesso europeu".
É sobejamente conhecida a importância dos cafés na vida cultural das grandes cidades europeias. De tal maneira que a iniciativa dos austríacos é uma boa ideia porque se mostra capaz de aproveitar, com um sentido prático, uma ideia luminosa de George Steiner, o grande filósofo judeu que praticamente começa o texto do seu pequeno livro A Ideia de Europa com o parágrafo que a seguir se transcreve:
"A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria preferida de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados pelos gangsters de Isaac Babel. Vão dos cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard passava nos seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo. Não há cafés antigos ou definidores em Moscovo, que é já um subúrbio da Ásia. Poucos em Inglaterra, após um breve período em que estiveram na moda, no século XVIII. Nenhuns na América do Norte, para lá do posto avançado galicano de Nova Orleães. Desenhe-se o mapa das cafetarias e obter-se-á um dos marcadores essenciais da "ideia de Europa"."(p.26, Gradiva, Lisboa, 2005, tradução de Maria de Fátima St. Aubyn).
Lendo a notícia do Público, e relendo as palavras de Steiner, não posso deixar de recordar a importância de certos cafés numa certa fase das nossas vidas. Nomes como A Pastorinha ou Fragas parecem capazes de levantar, ainda, uma espécie de poeira brilhante, quase mágica, ao mesmo tempo que evocam as incertas, longas, loucas, conversas e desconversas que começaram a desenhar, lá atrás, os fundamentos desta ponte de três (e outras) entradas. Não se trata de nostalgia ou de saudade de um tempo perdido, tão só de perceber que nós somos também o nosso passado. E que, se o não soubermos tornar presente, ficaremos todos mais pobres.
Recordo, por isso, com gosto, os cafés bebidos. Os cigarros fumados. Os sonhos, as ideias, as hesitações, as desavenças. E reparo que, nesses momentos, nesse momento das nossas vidas, os cafés estiveram sempre presentes. No Seixal, na Cruz de Pau, em Corroios. Estávamos, mais ou menos conscientes disso, a ser europeus. A criar, à nossa maneira. A inventar, com os nossos recursos. A rir, mesmo que só nós pudéssemos rir das nossas piadas. Discutimos tudo. Fomos tudo. Sonhámos tudo. E isso, caros, a mim ninguém me tira.
Penso, por consequência, que muita da piada desta Ponte, cada um à mesa do seu próprio ciber-café doméstico, nasce do facto de continuarmos, por outro(s) meio(s), noutros tempo e contexto, as conversas por vezes interrompidas, mas sempre retomadas, que começámos num café junto à Escola d'Amora. Conversemos, portanto.
Vai mais uma bica?

Filosofia da Terra

- Então, que tal as férias da Páscoa?
- É pá, só trabalho.
- Então?
- Cortar lenha, lavrar com o tractor, semear batata, tratar da vinha...
- Ufa!
- Lá na terra é assim!
(diálogo entre dois professores, um de Português, outro de Filosofia, numa Escola Secundária da Margem Sul).

Onde é que eu pus os meus ténis?

Ok, teve graça, a gente apanhou um susto e ponderou andar mais de autocarro e instalar uns painéis solares no telhado mas parem lá com isso!

19.4.06

Para Além de John Malkovich Queres ser Vítor Sobral?


Então nunca deixes um tacho com três batatas a cozer, dentro de um pouco de água, enquanto vais à rua fazer alguma coisa (comprar o jornal ou acompanhar o filho mais velho à escola). A água, estranhamente, desaparece e as batatas ficam coladas ao fundo, o qual, entretanto, ganhou uma cor castanha, muitíssimo suspeita. As batatas também ficam castanhas. E, de facto, não parecem boa opção para acompanhar as postas de salmão que esperam, ali, ao lado (com muito ou pouco sal?), por um grelhador já a crepitar. Não estranhes nunca o fumo excessivo, nem o cheiro a esturro. Não contes a ninguém o que se passou (sobretudo, à tua mulher), e escancara por completo as janelas, para que o ar faça o seu trabalho purificador. Separa as partes castanhas das não-castanhas das batatas. Aproveita apenas estas últimas. Não cometas, por favor, erros com o salmão. Depois, abre aquela garrafa de vinho. E serve-te bem dela. Talvez disfarce o sabor exótico que toda a refeição, inesperadamente, ganhou. Acompanha com música. E pimenta.

Gasolinoteca (lista de compras)


Uma das obrigações de uma gasolinoteca séria é a de preservar a memória da arte gasolinográfica. Eis alguns títulos que deveriam constar de uma lista de aquisições a efectuar desde já, antes que o preço do barril chegue aos, sei lá, 75,3 ou 82,6 dólares:
Cinema:
"Por um Punhado de Barris": Clint aos tiros em pleno deserto saudita. De antologia, a cena da beata cuspida para o meio dos ditos barris, na sequência que fecha o filme e cita directamente as imagens das explosões em Apocalypse Now.
"Esplendor na Nafta": Warren e Nathalie em cenas escaldantes, sempre com velas acesas à volta, em detalhe romântico, negros de paixão e de se rebolarem na areia poluída da praia. De antologia, a cena da citação de O último tango em Paris, mas sem vaselina, substituída pelo crude.
"Crime no Petroleiro do Oriente": Ustinov resolve mais um caso sem usar a força, apenas o poder da sua mente e das suas capacidades de especulação (petrolífera). Todas as cenas são de antologia.
"Há Lodo na Plataforma": Brando mais suado e oleoso que nunca, cheio de problemas de consciência por ter traído os seus colegas da plataforma. Filme sobre a culpa e a redenção. Os bons vencem, mas não convencem. Brando, no fim, escorrega no lodo e cai ao mar. E não há cena de antologia que o salve.
No caso de a Administração entender como válida uma política de aquisições mais vasta e diversificada, que abranja a literatura e a música, sugerem-se, de seguida, dois exemplos prioritários em cada uma das citadas áreas:
Literatura: A Ilha do Tesouro Negro, o clássico da literatura juvenil de Stevenson; e O Poço de Petróleo e O Pêndulo, um dos grandes contos de terror de Edgar Allan Poe.
Música: "Golden Brown", a conhecida canção dos Stranglers; e a obra completa do saudoso Trio e/ou Duo Ouro Negro.
(Nota final: não comprar, sob pretexto algum, o derivado português Há Petróleo no Beato.)