8.5.06

Tigres de Papel


Olivier Rolin veio a Portugal lançar o seu livro Suite no Hotel Crystal e deu uma entrevista a Alexandra Prado Coelho (Público, Mil Folhas, 29 de Abril). Apesar de J. a ter citado no seu post sobre o Astoria, no meu passo de caracol só agora a consegui ler. É uma entrevista fascinante sobre como nasce um livro: "Este livro foi encontrando as suas próprias regras. Fui descobrindo possibilidades que não adivinhava ao princípio." Ou sobre o desejo de viver outras vidas, no que isso tem de jogo vital ou utopia infantil: "Gostaria de ter sido agente secreto, de ter feito tráfico de armas (...). Gostaria de ter sido um pouco Corto Maltese". Ou ainda sobre a incontornável, ainda que escondida sob véus mais ou menos transparentes, dimensão obscura e disfórica da criação: "Escrevemos porque há algo em nós que não compreendemos, que ignoramos, temos um segredo, um incesto sonhado, um assassínio, uma traição fundamental, um pecado original. Há algo sombrio, escondido, no centro das nossas vidas e é em torno disso que escrevemos." Afinal, Freud ainda mora aqui. Mas, quando no final da conversa com Alexandra Prado Coelho, Rolin se pronuncia sobre a situação política francesa ficamos a saber que ele não adere "a nenhuma das paixões políticas" do seu (nosso) tempo, frase que não joga coerentemente com o que, a seguir, diz sobre a esquerda francesa. Segundo ele, em França a esquerda "nunca aceitou o mercado, o capitalismo mundial", o que é "uma coisa totalmente idiota e irrealista". O autor de romances como A Invenção do Mundo ou Tigre de Papel chega a admitir que também foi "assim na (sua) juventude" mas depois afirma "que era irrealista" (deixa de lado o idiota). Vindo de um revolucionário do Maio de 68 nem é de espantar, tantos foram os que deram o salto para o outro lado da barricada. Mas de um escritor esperamos sempre, pelos vistos sem razão, alguma capacidade de recusa do "pensamento único" que nos martela as cabeças por todos os lados com a ideologia do capitalismo neoliberal, como se não fosse viável, e necessário, imaginar e criar novas possibilidades políticas, sociais e económicas para vivermos melhor as nossas vidas. A parte mais perturbadora da entrevista vem nesta sequência. A jornalista portuguesa questiona Rolin sobre a recente movimentação de rua dos jovens franceses que levou à anulação do novo Código do Trabalho em França. O escritor responde da seguinte forma: "Via-a como um movimento conservador, não reaccionário, mas conservador, cujo objectivo era conservar o Código do Trabalho, que é muito rígido e torna muito difícil fazer despedimentos. / Não concordo com despedimentos, mas na economia mundial para podermos contratar temos também que despedir. Esse movimento dos jovens não é um movimento revolucionário nem inovador." O primeiro-ministro Dominique Villepin não diria melhor. Note-se que uma das propostas desse novo Código do Trabalho era a de que os jovens até aos 26 anos poderiam ser despedidos sem justa causa. Será a coisas como esta que Rolin chamará revolucionárias? Talvez esta pergunta seja "idiota e irrealista". Talvez. No entanto, em sentido inverso, talvez o comentário mais oportuno às afirmações do romancista francês seja o texto que o "jovem" colunista Rui Tavares publica no mesmo dia, no mesmo jornal (p. 5): "Socorro: somos todos privilegiados". Desse artigo que valia a pena lerem na íntegra, transcrevo apenas um parágrafo suficientemente apelativo para reflectirmos sobre alguns dos verdadeiros e dos falsos privilegiados dos nossos tempos: "um dos aspectos mais proeminentes do discurso político contemporâneo é que as castas dominantes - gestores e economistas de topo, membros de conselhos de administração, banqueiros, capitalistas e porta-vozes de associações industriais, marqueteiros e gestores de imagem, líderes de directórios partidários, governantes, colunistas ou editorialistas -, que não perfazem juntas mais do que um por cento da população, têm por hábito chamar privilegiados à maior parte dos restantes 99 por cento." É pena ver um escritor de excelência como Rolin colocar-se do lado de tão ínfima e duvidosa minoria. Mas que sabemos nós de um Tigre de Papel?

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