15.5.06

Pequenos Prazeres da Leitura (Sobre os Sítios)

(fotografia de Chema Madoz)

Contas largas, posso dizer que 90% do que leio é lido na cama e no sofá da sala. Poemas, contos, novelas, romances, ensaios, revistas, jornais, quase tudo me chega aos olhos deitado em posição mais ou menos recostada, apoiado em almofadas ou no braço do dito sofá. Quase sempre à noite, deitados os miúdos, com a luz a dar lateralmente. É essa luz que me permite aceder aos mistérios que povoam as linhas de caracteres que me falam dos dilemas dos heróis romanescos de Roth ou Auster, dos malandros de Ruben Fonseca, das praias de Sophia, dos cafés da Europa segundo Steiner, do inventor de jogos e versos de Oliveira. Mas se a cama e o sofá são os sítios que albergam, por razões muito concretas e comezinhas, em 90% dos casos, o meu corpo de leitor (o qual albergará, a existir, pelo menos momentaneamente, e em parte, o meu espírito de leitor!), é preciso não esquecer os restantes 10% da minha actividade leitora. Nesta décima parte, por paradoxal que possa parecer, a lista de sítios é incrivelmente grande em comparação com as 9 primeiras partes atrás referidas, que estão ligadas, como vimos, a dois sítios apenas, e bem quotidianos (cama e sofá). Nesta décima parte estão incluídos, por assim dizer, os sítios por onde me leva a vida e por onde eu carrego os livros que leio ou quero começar a ler. O campo, praias, cinemas (enquanto não começa o filme), consultórios médicos, salas de espera, repartições de finanças, salas de professores, casas de familiares, etc., são alguns desses locais de leitura, que, tenho de reconheçer, a leitura muitas vezes me faz esquecer. Mas aqui chegado, confesso que os meus sítios preferidos para ler - e a eles deve corresponder uma miserável décima de tudo o que já li - são os barcos e os comboios. Meios de transporte que nos levam o corpo para um destino mais ou menos determinado e permitem, ao mesmo tempo, que um livro nos conduza o espírito para todos os sítios possíveis e imagináveis. Suavemente irregulares sobre as águas - refiro-me, concretamente, aos barcos que fazem a travessia do Tejo - ou sobre os carris, criam condições para um bem-estar físico e mental que apura ao máximo os prazeres e as angústias (outra forma de prazer) da leitura. Enquanto a paisagem marítima (a ondulação, outros barcos, o recorte das cidades ribeirinhas à distância) ou a terrestre (urbana, sub-urbana ou campestre) passam lenta, ou rapidamente, no ecrãn das janelas, concentro-me nas imagens que as letras, as palavras e as frases desenham mesmo à frente dos meus olhos logo que abro o livro e me embrenho na sua descoberta ou redescoberta. Foi assim que, recordo-me muito bem, como Colombo, descobri a América, a de Kafka, a meio do Tejo e dos anos oitenta. Ou li muitos contos e alguns poemas de Borges, só para dar outro exemplo. Em movimento, a caminho do cais (mais do que de uma estação ferroviária, infelizmente), entre partir e chegar, experimentando o sempre novo prazer de dar como sinónimo de ler o verbo viajar, e o de dar como sinónimo de viajar o verbo ler.

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