Nesses dias usava os bilhetes de autocarro ou de cinema. Um bilhete para Cacilhas servia para marcar a página 57 de A Insustentável Leveza do Ser; a metade do bilhete de Apocalypse Now para dizer a mim mesmo que tinha ficado na página 118 de Manhã Submersa. Inesperadas ligações geográficas, cinematográficas e literárias se estabeleciam, ao acaso, por causa da necessidade de marcar, com uma fatia de papel, a última página lida. Perdia muito facilmente esses marcadores, o que me obrigava, muitas vezes, à releitura de um certo número de páginas, não raro as mais profundamente fixadas na minha memória de leitor, até encontrar a página onde ficara. Agora é assim: quase todos os livros trazem o respectivo marcador. Como se o leitor tivesse obrigatoriamente de marcar a página para não se perder. Como se um dos prazeres da leitura não fosse esse mesmo, o de marcar passo, perder-se, ter de voltar atrás. Por isso, para além de descolar ou arrancar etiquetas e talões de venda, que é o que faço logo depois de ter pago o livro, procuro, mais ou menos conscientemente, perder o marcador que vem lá dentro. Abro na primeira página do texto e começo. Quando parar a leitura (por cansaço, ou porque é preciso fazer alguma outra coisa, que não ler) logo se vê como marcar a página. O que interessa é começar a jornada com o livro; perder-me nele para me achar noutro sítio, noutro tempo do nosso tempo. Nada de marcadores, nem marcações, marcas ou dobras no canto da página. Apenas o prazer do terreno puro, livre e denso do livro. De um livro.
13.5.06
Pequenos Prazeres da Leitura (Sobre os Marcadores)
Nesses dias usava os bilhetes de autocarro ou de cinema. Um bilhete para Cacilhas servia para marcar a página 57 de A Insustentável Leveza do Ser; a metade do bilhete de Apocalypse Now para dizer a mim mesmo que tinha ficado na página 118 de Manhã Submersa. Inesperadas ligações geográficas, cinematográficas e literárias se estabeleciam, ao acaso, por causa da necessidade de marcar, com uma fatia de papel, a última página lida. Perdia muito facilmente esses marcadores, o que me obrigava, muitas vezes, à releitura de um certo número de páginas, não raro as mais profundamente fixadas na minha memória de leitor, até encontrar a página onde ficara. Agora é assim: quase todos os livros trazem o respectivo marcador. Como se o leitor tivesse obrigatoriamente de marcar a página para não se perder. Como se um dos prazeres da leitura não fosse esse mesmo, o de marcar passo, perder-se, ter de voltar atrás. Por isso, para além de descolar ou arrancar etiquetas e talões de venda, que é o que faço logo depois de ter pago o livro, procuro, mais ou menos conscientemente, perder o marcador que vem lá dentro. Abro na primeira página do texto e começo. Quando parar a leitura (por cansaço, ou porque é preciso fazer alguma outra coisa, que não ler) logo se vê como marcar a página. O que interessa é começar a jornada com o livro; perder-me nele para me achar noutro sítio, noutro tempo do nosso tempo. Nada de marcadores, nem marcações, marcas ou dobras no canto da página. Apenas o prazer do terreno puro, livre e denso do livro. De um livro.
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1 comentário:
Há livros marcantes, há marcadores relevantes e há, por vezes, a soma dos dois, não é? Em todo o caso, também gosto de retomar a viagem um pouco atrás, mesmo quando deixei um talão distraído, entre duas folhas.
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