13.5.06

Pequenos Prazeres da Leitura (Sobre os Marcadores)


Nesses dias usava os bilhetes de autocarro ou de cinema. Um bilhete para Cacilhas servia para marcar a página 57 de A Insustentável Leveza do Ser; a metade do bilhete de Apocalypse Now para dizer a mim mesmo que tinha ficado na página 118 de Manhã Submersa. Inesperadas ligações geográficas, cinematográficas e literárias se estabeleciam, ao acaso, por causa da necessidade de marcar, com uma fatia de papel, a última página lida. Perdia muito facilmente esses marcadores, o que me obrigava, muitas vezes, à releitura de um certo número de páginas, não raro as mais profundamente fixadas na minha memória de leitor, até encontrar a página onde ficara. Agora é assim: quase todos os livros trazem o respectivo marcador. Como se o leitor tivesse obrigatoriamente de marcar a página para não se perder. Como se um dos prazeres da leitura não fosse esse mesmo, o de marcar passo, perder-se, ter de voltar atrás. Por isso, para além de descolar ou arrancar etiquetas e talões de venda, que é o que faço logo depois de ter pago o livro, procuro, mais ou menos conscientemente, perder o marcador que vem lá dentro. Abro na primeira página do texto e começo. Quando parar a leitura (por cansaço, ou porque é preciso fazer alguma outra coisa, que não ler) logo se vê como marcar a página. O que interessa é começar a jornada com o livro; perder-me nele para me achar noutro sítio, noutro tempo do nosso tempo. Nada de marcadores, nem marcações, marcas ou dobras no canto da página. Apenas o prazer do terreno puro, livre e denso do livro. De um livro.

1 comentário:

j disse...

Há livros marcantes, há marcadores relevantes e há, por vezes, a soma dos dois, não é? Em todo o caso, também gosto de retomar a viagem um pouco atrás, mesmo quando deixei um talão distraído, entre duas folhas.