23.4.06

Elefantes & Minotauros

Segundo Gus Van Sant em dois dias.
Dose dupla, e bem dura. Se Last Days parece ser sobre a auto-destruição individual, no que ela revela da doença social que contamina o indivíduo, Elephant (2003) lança sobre o espectador, sem contemplações, sinais terríveis que funcionam como sintomas de um mal profundo, colectivo. Uma pulsão de auto-destruição social, que se processa, necessariamente, através dos indivíduos - ilhas à deriva num oceano labiríntico, o qual pode esconder um Minotauro com rosto de adolescente no corredor mais próximo.

Sequência a meio do filme: enquanto um dos adolescentes toca piano (uma sonata de Beethoven), o outro joga, num computador, um jogo que cita directamente o filme anterior do realizador (Gerry, de 2002): figuras virtuais de homens perdidos num deserto branco, como acontecia com os dois protagonistas desse filme. Figuras que matam e morrem, tal como acontecerá com a personagem que joga no computador (um dos adolescentes assassinos). E como aconteceu, de facto, no Liceu de Columbine. Brutalmente. Realmente. Mesmo sabendo que o filme é uma ficção sobre factos, uma invenção, ou manipulação, desses factos, não é possível fazer desaparecer o seu efeito de realidade. Morreram 13 pessoas. E isto não é ficção.
De resto, uma cena com alguém ao piano a tocar uma sonata de um compositor alemão antes de perpretar um massacre não pode deixar de lembrar o tópico, tantas vezes retomado, do assassino que, durante o dia, pratica a carnificina e à noite, toca calma e docemente música clássica. Essa clássica ligação entre civilização e barbárie. Ou, se quisermos citar George Steiner (o mesmo dos cafés da Europa), a ligação lógica entre civilização e barbárie, a ideia de que a civilização, a nossa, se ergueu sobre o massacre e a destruição de homens e bens ao longo da História.
Elephant surge, pois, como um filme sobre as sombras da violência fascizante que espreitam por entre as brechas da sociedade contemporânea, e não só a americana. Afirmação, aliás, completamente transparente no filme: na manhã do assalto à escola, os dois jovens homicidas assistem a um programa televisivo sobre o regime e a propaganda hitlerianos. Uma das perguntas que fazem, enquanto assistem às imagens, é sobre a possibilidade de se comprarem, hoje, bandeiras nazis. A outra é a de saber se aquele, ali, é Hitler.
Falta-nos memória do passado, do horror do passado. Também por isso o horror continua presente no mundo que é o nosso; neste, no qual alguns adolescentes perguntam se é possível comprar bandeiras nazis porque nele parece que tudo se pode comprar, sem sairmos de casa. Basta um clique. Um mundo no qual se tem de perguntar se os elefantes ainda têm memória.

1 comentário:

j disse...

Um mundo onde a memória não interessa porque o passado (e o futuro) não tem valor, apenas este aqui e agora, aparentemente inesgotável e palpável, ao alcance de um tiro-click?
(O filme é notável!)