0. Gosto desta forma de diálogo: permite um maior aprofundamento das ideias, o que é difícil quando apenas conversamos. Mas, porque se trata de um diálogo à distância, ela também tem os seus inconvenientes, nomeadamente a impossibilidade de clarificarmos melhor, de imediato, o que sentimos e/ou pensamos (neste caso, sobre MegaCities). Por isso, gostaria apenas de precisar alguns pontos em que, aparentemente, divergimos nas nossas leituras do filme que vimos em companhia tão agradável. Vou seguir a ordem do teu texto, a fim de facilitar o meu esforço de clarificação e precisão das minhas ideias, dúvidas e emoções em relação ao que está em discussão.
1. MegaCities é um grande filme (ou documentário, ou obra de arte, ou...). Reafirmo isto, para excluir qualquer dúvida sobre o valor que, para mim, este trabalho do realizador austríaco tem. E, porque é um grande filme, suscita questões, inquieta-me, cria desassossego. É uma das maneiras de, subjectivamente, percebermos que estamos perante uma obra interpelante, tanto do ponto de vista formal, como ao nível da matéria que nos é mostrada. Uma obra complexa, que não se esgota numa análise só, que, depois de a pensarmos, continua a "exigir" ser pensada. Os meus textos, e os teus, são disso a melhor prova. Estamos a exercer os nossos direitos de espectadores. Estamos a tornar viva a obra. Tal como um livro só existe se for lido (isto é, discutido, analisado, problematizado, etc), um filme só ganha sentido se for visto e pensado, se merecer ser visto e pensado (e MegaCities está neste patamar, sem dúvida). Estamos, portanto, aqui, completamente de acordo.
2. MegaCities é um filme político, e não é possivel excluir o "discurso político da obra de arte". Estou a citar-te, e estou inteiramente de acordo. Aliás, digo-o duplamente no fim do primeiro post sobre as "Vastas emoções...": "nisto reside, para além da sua dimensão política (de denúncia da miséria e da sordidez da vida de milhões de pessoas), uma das questões mais perturbadoras do filme: precisamente, o problema, também político, da relação entre ilusão e realidade." Gostaria, por isso, de clarificar o que quis dizer quando falei de "discurso político", que o filme não é: um produto de propaganda que defende uma qualquer ideologia marcadamente política (neste caso, poderia ser um discurso do género: "reparem, o sistema capitalista está podre, produz miséria, o homem é explorado, etc"). O filme, felizmente, não faz isso: recusa, e bem, qualquer facilidade ideológica. O que não deixa de ser uma tomada de posição política. Filmar aquelas pessoas daquela maneira é, obviamente, uma tomada de posição política. Pelo que se deve concluir que, também aqui, estamos inegavelmente de acordo.
3. Mas, sem estarmos propriamente em desacordo (porque há aqui complexidade que se dá mal com dicotomias, como sublinhaste) seguimos linhas de juízo diferentes em relação a um ponto que desejo agora retomar. Eu acho que o filme corre riscos, no sentido em que arrisca, mas também no sentido em que pisa o risco da sua própria sustentação enquanto olhar documental sobre certas zonas do real. Vou ser mais específico: o filme arrisca e ganha a aposta, de forma assombrosa, nas duas primeiras partes; arrisca e ganha, de forma séria e irónica, na terceira parte; mas falha (embora seja um falhanço interessantíssimo) na quarta. E, para mim, falha nesta parte porque nela o realizador, que obviamente "não é o mau da fita" - não o digo, nem o penso -, surge nela excessivamente como elemento problemático na relação filme/realidade. Estou a referir-me, em concreto, à sequência da rádio (a que foste sensível, por razões óbvias, durante a conversa com Glawogger), na qual percebemos que tudo começa com uma criação do próprio cineasta. Ficámos a saber na conversa, e não por meio do filme (ou seja, o filme não clarifica totalmente as suas linhas de actuação) que foi ele, Glawogger, que esteve no princípio do processo, sugerindo o programa; foi dele a ideia, a qual teve consequências na criação das situações que depois foram reconstituídas para serem filmadas; foi dele toda a montagem cinematográfica, ficcional, do diálogo em simultâneo entre o homem da rádio e os seus ouvintes (impossível, do ponto de vista da realidade). Numa palavra, ele criou o real que foi depois recriado no seu documentário. Pode falar-se, no fim desta sequência de processos, de autenticidade? Ou alguma coisa se perdeu? Eu penso que alguma coisa se perdeu. E foi a essa perda que fui sensível.
4. Questão de fundo colocada por ti: mostrar a realidade, por mais degradante que seja. Sim, completamente. Sim, estamos de acordo. Mas essa exposição não esgota as questões. É importante pensar os modos como se mostra (questionar esses modos). E, na verdade, isso é tão relevante como aquilo que se mostra: "procurar um olhar justo e equilibrado sobre a realidade que (se) documenta, tentando interferir o mínimo possível nessa realidade". Tu dizes isto em relação ao trabalho do repórter, mas penso ser perfeitamente justo dizê-lo em relação ao trabalho do realizador de documentários, mesmo que depois se diga que é um filme, ou uma obra de arte. Porque é esse o sentido do filme de Glawogger, mostrar o que está acontecer naqueles sítios. A questão é saber até que ponto aquilo que se mostra foi encenado ou manipulado pelo olhar que mostra. Por isso têm de ser colocadas questões, mesmo que elas fiquem sem resposta. E foi o que eu fiz em relação às imagens de Cassandra, ou dos cães, ou dos russos bêbedos. Perguntas, apenas. Manifestações de dúvida ou perplexidade. Porque, para além do olhar de Glawogger, há o olhar de Cassandra (o que sabemos desse olhar, de facto?) ou o olhar do russo que não quer ser humilhado (e, na verdade, sabemos alguma coisa sobre tal olhar?). Perguntas, manifestações de dúvida (e não somente perguntas retóricas) porque, por aqui, passa, parece-me, o problema que tu colocas por meio da citação do Pedro Rosa Mendes: respeito pelo outro, e pelo seu olhar. Isso que é possivel ver num dos momentos mais extraordinários do filme, num dos mais comoventes: o do homem a cores. Depois de mostrar a estranheza da sua situação e do seu trabalho, o realizador dá-lhe a palavra. E ele apropria-se dela. Mostra qual é o seu olhar (o seu tristíssimo drama de homem esgotado pelo trabalho, sem dinheiro para regressar à aldeia).
5. Vastas emoções, pensamentos imperfeitos é o título de um grande romance de Ruben Fonseca. Escolhi-o, de novo, porque me parece uma metáfora extraordinária daquilo que sinto e penso em relação a grande parte das imagens de MegaCities. Imagens que me provocam vastas emoções. E pensamentos imperfeitos. Mas que me permito partilhar contigo. Convosco. (Depois de muitas interrupções e do mais velho me ter apagado parte do texto e de ter deitado os dois e...).
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