Olhar e Ver. Há uma diferença entre olhar e ver. Olhar é passar os olhos por. Ver é ir além da superfície, e tentar compreender. MegaCities é um filme sobre a velocidade de olhar, The Workingman's Death é um filme sobre a lentidão de ver. Se no primeiro somos atordoados pela vertigem das imagens e das histórias, no segundo a câmara concentra-se demoradamente nas pessoas que mostra, dá-lhes a palavra, regista a dureza mas também a linha monótona da rotina do trabalho, mesmo o mais perigoso ou cruel. MegaCities é um filme sôfrego, The Workingman's... é um filme paciente. E quase perfeito nessa sua paciência.
Deambular e parar. Tal como MegaCities, o filme de ontem assenta na ideia de um descentramento do olhar europeu. Sair para conhecer o mundo. Encontrar outros territórios físicos, claro, mas essencialmente culturais e humanos. Talvez uma linha de diferenciação entre os dois filmes também seja essa: enquanto MegaCities se interessa primeiro pelo território físico (a imensa cidade) e só depois mostra alguns dos seus habitantes e sobreviventes, The Workingman's... parece-me colocar os homens antes dos lugares, sem que isto signifique uma minimização destes. Comparem-se os títulos e veja-se o que predomina em ambos: num, as megacidades; no outro, os homens de trabalho. Pelo que, se em ambos encontramos um processo idêntico de deambulação pelo mundo, os modos de fixação do olhar são algo distintos. Num caso, a câmara persegue as personagens quase sempre em movimento pelo espaço urbano (embora este conceito seja muito discutível para falar daquilo que vemos de Bombaim ou da Cidade do México), no outro temos pessoas numa relação relativamente estática com o espaço (mesmo no caso dos trabalhadores indonésios do enxofre, cuja acção é limitada à montanha, por imensa que seja). Uma mina, cúmulo do fechamento espacial. Um matadouro. Uma praia. Uma fábrica. E os homens presos a cada um desses espaços.
O indivíduo e o grupo. Outra diferença fundamental entre os dois filmes: MegaCities retrata sobretudo indivíduos que procuram sobreviver na megacidade; quando falamos do filme, lembramo-nos, principalmente, das histórias de Cassandra, do homem-camaleão dos corantes, do negro aldrabão de Nova Iorque. The Workingman's... é sobre o grupo, o colectivo: os "heróis" de Donbass; os "fantasmas" das montanhas de Java; os "leões" nigerianos; os "irmãos" de Gaddani; os operários chineses de olhos postos no "futuro". E aqui podemos sentir uma das afirmações políticas mais importantes do filme, a de que o homem se deve unir aos outros para ser mais forte. A união faz literalmente a força. E só em conjunto os homens poderão vencer o que os limita. Nisto, o filme de 2005 mostra-se claramente mais empenhado e afirmativo, também porque o tema que aborda, o trabalho e os trabalhadores, seja imediatamente reconhecido como político. Não só no sentido em que se denuncia determinadas condições sócio-laborais duríssimas, mas ainda no de mostrar o trabalho colectivo como forma de o homem vencer as adversidades que a sociedade ou a natureza lhe colocam. Se o trabalho é sofrimento (trabalho / tripalium) é também forma de afirmação da força, da coragem, da dignidade, da capacidade de invenção e de auto-superação do ser humano (embora essa união não esteja isenta de hierarquias ou conflitualidade, como todo o capítulo do matadouro de Port Hancourt mostra). E por aqui se pode fazer uma ligação produtiva ao trabalho de Sebastião Salgado.
A ironia e a seriedade. Mas se o olhar de Glawogger é eminentemente político, ele não deixa de se auto-relativizar, sobretudo através da presença constante da ironia e do humor. Assim, sendo verdade que estes operário trabalham duramente, também é certo que se divertem gozando com o trabalho. São vários esses momentos de gozo: a mulher do mineiro que o provoca dizendo-lhe que ele passa a vida deitado na mina quando ele se deseja deitar em casa para descansar; o "fantasma" engatatão que recebeu um beijo da turista francesa; os músicos que elogiam o carniceiro para dele obterem o devido pagamento; o fotógrafo de Kalashnikov em punho só para a fotografia; os operários chineses a elogiarem a tecnologia em contraste com a maquinaria desactualizada que utilizam, por sua vez em contraste com a da siderurgia de Duisburgo, entretanto encerrada e transformada em Parque de Diversões mais ou menos amorosas e clandestinas. No entanto, a ironia é sobretudo um modo de distanciação ideológica de Glawogger em relação à cegueira das ideologias: lembremos que o filme começa com uma remissão aos filmes de propaganda soviética e termina com citações de Mao. Ao fazê-lo, o realizador austríaco revela, indirectamente, o rídiculo do olhar ideológico e propagandístico sobre o trabalho, incapaz de mostrar os trabalhadores como homens, seres humanos normais, com sonhos e sono, desejosos de riso e de insulto (exemplo dos mineiros ucranianos), e não títeres ou "heróis do trabalho".
Trabalho e trabalho cinematográfico. Filme sobre homens e a sua luta pela sobrevivência nas condições mais extremas (ponto de continuidade e de retorno a MegaCities), The Workingman's... é uma obra épica de homenagem ao trabalho como forma de dignificação e, ao mesmo tempo, de escravização do homem (nesse sentido podem ser lidas as palavras de Faulkner, citadas no início: o homem não cessa de inventar maneiras de fazer mal a si e aos outros). Mas, implicitamente, este filme é também uma homenagem ao cinema como forma de revelação do mundo. Do nosso mundo. E a luz espessa e sombria que as suas imagens irradiam parece-me a metáfora desse processo de revelação. Um processo que é um trabalho e um compromisso, ético e estético, com aqueles trabalhadores que aceitaram ser filmados enquanto trabalhavam, mas igualmente com os trabalhadores que não estão no filme, sendo, todavia, por ele subtilmente evocados. Talvez se possa, então, dizer que este filme não é apenas sobre o trabalho como arte da sobrevivência; com efeito, ele é também sobre a arte, e particularmente o cinema, como trabalho de sobrevivência. Quer dizer, como forma de afirmação da vida e da possibilidade da esperança contra a negatividade e o absurdo. Afirmação do homem e do trabalho contra a morte. No fundo, a isso se resume, desde sempre, o Trabalho de todos os homens.
Sem comentários:
Enviar um comentário