Retomemos o diálogo interrompido. E avancemos, sem demora, para o ponto que eu gostaria de colocar em cima da mesa. O problema da produção e da forma do filme e das suas sequências / imagens. O problema, político e ético, da relação entre ilusão e realidade.
Este filme é um documentário, nenhuma questão quanto a isso. E, como documentário, caracteriza-se "pelo compromisso com a exploração da realidade. Mas desta afirmativa não se deve deduzir que ele representa a realidade tal como ela é. O documentário, assim como a ficção, é uma representação parcial e subjectiva da realidade." Pelo que existe sempre "uma indefinição de fronteiras entre documentário e ficção" (citações retiradas do artigo "Documentário" da Wikipédia). Nenhuma dúvida quanto a isto, também. A questão é, por isso, outra. Concretamente, a questão é a de saber como se trabalha aqui essa indefinição de fronteiras entre documentar e ficcionar. Para mim, esta é a questão central do filme. Porque se trata, de facto, de um filme (o cineasta utilizou expressões como obra de arte e projecto de arte, se o meu inglês não me falha), e não de um discurso político ou de uma reportagem.
Neste sentido, compreendem-se a polémica e as reacções críticas ao filme. Porque há um problema ético por resolver, uma ambiguidade não esclarecida. Claro, mostrar parcelas da realidade que se quer documentar é uma decisão pessoal e subjectiva. Mas há uma linha de fronteira que, ao ser atravessada, coloca todo o projecto em risco de credibilidade. Vou tentar ser mais claro: filmar o que existe é, sempre, filmar a partir de um ponto de vista, mas a questão é saber se as imagens servem para mostrar o que existe (nascem dessa descoberta) ou servem para expor algo que previamente se conhece e se espera que aconteça para se poder "documentar". Não é por acaso que a parte do filme sobre Nova Iorque é a mais problemática, em termos de processos e de valor cinematográfico, das quatro. Em grande parte, é porque nela se dão a ver de forma mais clara todas estas questões.
Para mim (e para ti, pareceu-me), o capítulo nova-iorquino é o menos forte, ou o mais falhado, o que não significa que seja o menos interessante, pois é o que nos ajuda a compreender melhor as virtualidades e as debilidades do método de trabalho de Glawogger. É verdade: já conhecemos de ver nos filmes (ou de lá teres estado?) aquelas ruas, aquele ambiente. Mas, para além disso, nesse capítulo a encenação torna-se tão evidente que o filme ganha muito mais uma dimensão ficcional do que documental e, por isso, não tem a mesma força que vemos nas outras sequências (principalmente as de Bombaim e da Cidade do México). Por outro lado, o facto de ser apresentada como última parte leva o autor a querer explicitar o seu ponto de vista sobre todo o filme. Algo que nas outras sequências não é senão mostrado (e o espectador que interprete e lide com isso), aqui é dado como evidente, a saber: "este filme é sobre a sobrevivência na grande cidade". Como se o cineasta tivesse sentido na carne e no filme o problema das próprias cidades que filmou: o excesso de desordem e caos, e a necessidade de dar um sentido, uma linha de entendimento a esse caos. O problema é que a exposição do tema retira força e, digamos com aspas, "verdade" às imagens, como se o realizador já não estivesse a documentar (com tudo o que de ambíguo e subjectivo isso acarreta), mas a exibir provas (imagens) que fundamentam um ponto de vista prévio, o da temática da sobrevivência nas selvas das megacidades.
Momento extremo desta lógica: a sequência do quarto de hotel com o vigarista a fazer de si próprio (a representar como se fosse verdade) e a roubar o cliente homossexual (faz de conta) e toda a sequência da rádio, em que tudo começa com a sugestão de um programa sobre a temática da sobrevivência na megacity, sugestão do próprio realizador - não já um documentador / documentarista do real, mas o criador (o realizador) desse real. Ele filma a partir do que criou. Estamos, portanto, bem longe já da simples temática da influência que a presença de uma câmara exerce nos comportamentos dos indivíduos (que representam sempre um papel, mais ou menos consciente), e bem próximos da ideia de manipulação da realidade, quer dizer, do facto de a realidade que se quer documentar ser aquela que, precisamente, se criou. Ou seja, que não existia e que só passou a existir em função do documentário que se fez. Pelo que existem, aqui, questões políticas e éticas sérias e importantes.
Claro, mostrar a realidade é forçosamente, com uma certa perspectiva, mostrar parcelas da realidade: as 13 ou 14 horas de trabalho de um homem em 45 segundos. O filme é honesto, assume isso. Mas uma questão mais pertubadora é a de perguntar porque se mostram todas estas imagens. Para quê? (a pergunta da C., também no carro, que suscitou mais discussão, ainda que breve, entre nós, lembras-te?). Para mudar o mundo? Para agitar consciências? Daqui nasce mais uma pergunta: e os fins justificam os meios? Isto é, para documentar (?) a decadência e a sordidez das ruas de Nova Iorque, devo colocar homens a representar as suas vidas? A fingir o que são? E, pondo isto em relação com o resto do filme, como pensar todas as outras sequências? O que há de documental e de ficcional nelas? (Este filme é um documentário?)
É um filme, e é um documentário (como tu, aliás, disseste). Que coloca muitas questões, que desafia. Com sequências inesquecíveis, equívocas, ambíguas. Por exemplo, a de Cassandra: dignidade (foi a tua leitura) ou exploração voyeurista de um espectáculo degradante para homens e mulher? Por exemplo, o da luta de cães, de uma violência terrível e angustiante (o cineasta filmou o que aconteceu ou "manipulou" para que acontecesse e pudesse ser documentado?). Por exemplo, o dos alcoólicos russos: há um que passa o tempo a falar da humilhação que está a sofrer. Um cineasta que filma essa humilhação (com autorização das autoridades? dos humilhados?) denuncia ou é cúmplice da mesma ao explorá-la para a mostrar num filme seu? (pergunta extrema: denuncia-se ou (e?) explora-se a miséria que se mostra?). O filme está aí. Com as suas imagens, e as suas questões. Lidemos com elas.
Porque, de facto, "o absurdo é património da humanidade."
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