25.4.06

"Vastas Emoções, Pensamentos Imperfeitos" (mais um post sobre MegaCities)

0. Como prometido em post anterior, retomo um diálogo que ficou a meio (sabendo, de antemão, que tudo fica a meio).
1. MegaCities é uma provocação. Aquele murro bem aplicado na boca do estômago doméstico e mais ou menos (in)tranquilo. Um filme que não deixa espaço para o sossego. E não apenas pelo que mostra: os modos terríveis, ou inventivos, de sobreviver em quatro megaselvas urbanas do mundo contemporâneo. Não parece, de facto, razoável dizer que esta é uma obra apenas sobre a miséria, ou a violência, e as mil e uma maneiras de a fintar; ou sobre pessoas com nome próprio (e sonhos bem concretos) e rosto visível por debaixo das camadas de sujidade e infelicidade. Na verdade, há algo mais que deixa o espectador incapaz de indiferença. Quer dizer, a par do que é mostrado, há, no filme, uma questão incontornável, a de saber como lidar com o método de trabalho e de produção das suas imagens (o método do realizador) em diversas partes do filme. Numa palavra, não é possível pensar o conteúdo do filme sem pensarmos, igualmente, na sua forma de construção e apresentação ao espectador.
2. MegaCities apresenta sequências de imagens impressionantes. Em Bombaim: os operários que trabalham rotineiramente durante horas (que batem a chapa, que cosem camisas, que arrancam penas a frangos, etc); o homem dos corantes (arco-íris? camaleão?); os recolectores do lixo vendável nos canais imundos, etc.
Na Cidade do México: o cavalo branco no meio da neblina da megalixeira, como uma presença animal fantasmática, sugestão de que as leis daquele lugar são diferentes do mundo dos seres vivos ditos normais; as crianças e os pintaínhos, todos sem amparo, à procura de um quinhão de calor parental; o homem do lixo e a sua equipa de futebol; etc.
Em Moscovo: os cegos na fábrica de interruptores da luz; os leitores no metro (com ressonância wenderiana, a fazer lembrar os anjos de As Asas do Desejo); a criança que realiza os trabalhos de casa; a caserna / prisão para os moscovitas embriagados; etc.
Em Nova Iorque: sobretudo a sequência do "vendedor de ratas" a chutar e a tripar no automóvel em andamento e, depois, a falar sobre "ir na corrente", suando abundantemente, e acabando por "se ficar": paraísos artificiais? sono e cansaço extremos? overdose? (ou, apenas, encenação?).
3. Problemas de montagem e método (1). Como ligar e ordenar o caos, estas sequências de imagens? Glawogger, parece-me, usa três recursos: a) no fim da sequência, apaga-se a luz (a imagem vai ficando escura) e acende-se numa outra cidade, ou com outra "história" na mesma cidade (Cidade do México: sequência dos colectores de lixo, seguida da sequência do vendedor, das crianças e dos pintaínhos, por exemplo); b) através de uma espécie de capítulos, com subtítulos. Por exemplo: "Capítulo dos trabalhadores" - e vemos os "serralheiros" de Bombaim a bater e a cortar chapa, como na Idade Média, em paralelo com a condutora russa de pontes / gruas numa siderurgia de Moscovo; finalmente, c), através disso a que chamaste "inserts", j., ou seja, ligando-se, por ex., a produção de camisas em Bombaim à sua venda nas ruas de Nova Iorque.
O filme organiza-se, portanto, na forma de uma espécie de mosaico: peças que vão encaixando, não de forma contínua (não se conta uma história, apresentam-se fragmentos de diversas histórias), mas saltando de cidade para cidade ou de pessoa / personagem para pessoa / personagem. Ou, em vez de mosaico, puzzle: o filme fazendo-se por avanços em zonas diferentes do tabuleiro (as quatro cidades), com saídas e regressos a essas zonas, conforme as peças vão chegando às mãos de quem joga (o realizador). O filme cresce, assim, de forma desordenada, ou pelo menos parece, tal como as próprias megacidades que são a matéria-prima das imagens que o constituem. Reparaste, j., na tua dúvida, já no carro, sobre a linha condutora do filme? É a dúvida do espectador atordoado pela catadupa (o caos aparente) de imagens, histórias, rostos, e da velocidade a que eles surgem na obra. É o filme a continuar a lógica de expansão para fora, ou para dentro, das cidades que "retrata". Mas, ao contrário delas, o caos é, no filme, mais uma ilusão do que uma realidade. E nisto reside, para além da sua dimensão de afirmação política (de denúncia da miséria e da sordidez da vida de milhões de pessoas), uma das questões mais perturbadoras do filme: precisamente, o problema, também político, da relação entre ilusão e realidade. Mas, agora é muito tarde (3 da manhã) e eu tenho de interromper, de novo, este diálogo; espero que seja possível retomá-lo em breve. Com as minhas, ou as tuas palavras. Ou, quem sabe, as de outros.

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