Foi um dos meus amigos de bairro. Dos 12 aos 15 jogámos futebol muitas vezes, por todo o lado. Na rua, no parque, na Praia da Velha. Ao sol e à chuva. Era um esquerdino prometedor, o último de quatro filhos de uma família onde não abundava a riqueza.
As minhas melhores memórias dele vêm desse tempo: dos jogos de bola de rua "até aos 10" ("muda aos 5"), das trocas de cromos dos grandes jogadores do Benfica desses dias (Humberto, Alves, Toni, Pietra, Chalana, muitos outros), das revistas de BD baratas, dos campeonatos de caricas...
Colegas de turma fomos, por poucos meses, no 8º ano. Depois, inexplicavelmente (para mim e para os outros 3 ou 4 mais próximos), deixou a escola, a meio desse ano, e foi trabalhar. Com um dos irmãos, a cortar mármore.
A coisa correu, parecia, normalmente, até à idade de ir à tropa: de quando em quando íamos juntos ao cinema (Flash Gordon, Rambo, ah saudoso cinema S. Vicente!, o nosso Cinema Paraíso!); por vezes, também, à bola, ver o clube da terra. Mas os nossos mundos estavam a evoluir em órbitas cada vez mais distantes. Ele, com uma experiência de trabalho duro, ao lado de homens duros, com uma linguagem dura. Nós, e só por mim posso falar, a descobrir tudo por via dos livros e dos filmes (e já não o Flash Gordon ou o Rambo...), embora também eu tenha tido as minhas doses anuais de trabalho duro (nas obras, nas férias de Verão).
Mas o afastamento era notório, gradualmente mais evidente. O quase corte veio com o alistamento dele no exército. Eu, um mês mais novo, usei o meu direito de adiamento por motivos de prosseguimento de estudos. Ele foi lá fazer-se um homem. E, como aconteceu com muitos, ele, que nunca tocara num cigarro nem era dos que mais bebia nas festas de garagem ou de fim-de-ano, veio de lá com o cardápio todo aprendido: claro, os cigarros; mas, sobretudo, o álcool e as drogas. As leves e as outras.
Ainda manteve a namorada de antes da tropa por uns tempos. O inevitável, porém, aconteceu. E a relação teve de terminar, já depois da rapariga ter começado também a sair dos carris. Os pais dela puseram fim ao namoro e isso ajudou, e de que maneira, à descida que continua ainda, sem parar. Mais tarde, relacionou-se com uma mulher mais velha com quem acabou por ter uma filha. Agora, não sei nada dessa relação. Mas há muito que os não vejo juntos...
É talvez necessário dizer, neste momento, que raramente me cruzo com ele. E que, quando tal acontece, habitualmente eu vou de carro e aceno-lhe em jeito de cumprimento. Ele anda a pé. Sempre. Esta circunstância (eu de carro, ele a pé) é o pretexto deste texto, que eu preferia não escrever. E foi assim, vindo de carro, que eu o vi mais uma vez. E foi sem parar o carro que eu coloquei, a mim mesmo, a questão que paira sobre este texto. E a questão é, como calculam, esta - até onde pode descer um homem quando começa a descer?
Ele, neste momento, está no ponto da descida em que arruma carros no descampado em frente ao antigo Tribunal e no ponto em se dobra para dentro dos caixotes de lixo à procura de alguma coisa que valha a pena (vender? comer? ambas?). Foi isso que eu vi. Duas vezes. Sim, duas vezes. Tem hoje 38 anos. Tem uma filha um pouco mais nova que o meu filho mais velho (está com a mãe? com os avós?). E dobra-se para dentro daqueles contentores de lixo verde que estão na rua para receber tudo aquilo que nós não queremos. É aí que ele mete as mãos. Lá dentro. E dobra-se. Lá para dentro. Olha. Remexe. Junta. Separa. E tira de lá partes daquilo que nós deitámos fora. Restos de comida. Cascas de batatas. Ossos. Espinhas. Sacos de plástico engordurado. Mil e uma porcarias. Tudo o que nós não queremos ver mais à frente dos olhos. Ele enfia lá, bem no fundo daquilo, os olhos dele. E as mãos dele. E a dignidade dele.
Passei, então, de carro. Ele está naquilo, dobrado para dentro. Eu vejo e passo de carro. Podia parar e falar com ele. Perguntar-lhe o que anda a fazer. Mas só isto, esta ideia de parar e de lhe falar, é já uma humilhação. Para ele. E para mim. Pelo menos, é como eu o sinto. Por isso, não páro o carro, pelo contrário, avanço até à praceta onde moro, não muito longe do local onde o vi a remexer o lixo. Estaciono, respiro fundo, saio, tranco o carro. Subo a casa e conto o que vi à minha mulher. E escrevo este texto. Enquanto o meu amigo de outros tempos remexe no lixo.
Escrevo este texto, e o sentimento de vergonha não diminui.
Sim, escrevo este texto que preferia não ter escrito.
(Nota: Lourenço é Nome de Jogral é o título de um romance de Fernanda Botelho, publicado em 1971).
2 comentários:
Compreendo que preferias não o ter escrito, mas está notável. Um belo/horrível murro na boca do estômago.
:-(
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