Com a devida vénia, a crónica que Paulo Moura (um dos melhores repórteres da nossa geração) assina hoje no Público:
Telefonemas da Selva
Todas as semanas recebo telefonemas da selva. Até já programei o telemóvel com um toque especial para estas chamadas de números marroquinos. Vêm da região de Tânger ou de Ceuta, por vezes de Rabat ou Casablanca, outras vezes da Nigéria, Mali, Sudão.
Nem sempre atendo. Nem sempre estou disponível para esse mundo. Ontem foi Ezi, da floresta de Missnana, nos arredores de Tânger. Contou-me que um dos filhos está doente, com febre e diarreia, precisa de tratamento, mas não há forma de o levar para o hospital. Ezi e Charity têm dois bebés, porque pensaram que com eles seriam aceites na Europa. Mas não conseguiram o dinheiro para pagar às máfias que fazem a travessia. Já o tiveram, tentaram uma vez, mas o barco naufragou no Estreito de Gibraltar. Salvaram-se por milagre.
Há dois dias telefonou Gossom, contando que, depois de ter sido deportado cinco vezes para Oujda, no deserto entre Marrocos e a Argélia, preso, torturado, esfaqueado por assaltantes, os marroquinos conseguiram deportá-lo para a Nigéria.
A semana passada ligou Kinsley, que está em Ben Yunes, uma floresta perto de Ceuta. Queixou-se de que a Polícia marroquina está de novo a atacar os ilegais africanos, a um ritmo diário, com armas de fogo e cães treinados. Que os rouba, os mata, os deporta para o deserto.
Magdalene e Edith também costumam telefonar de Ben Yunes. Dizem que os polícias e grupos organizados de marroquinos fazem incursões no bosque para violarem as mulheres. Elas escondem-se em tocas de javali. Passam dias e noites imóveis, enregeladas, esfomeadas, à espera que o perigo passe.
Mais raramente telefona Miriam, que anda a pedir, com o seu bebé, pelas ruas de Tânger. Está há cinco anos em Marrocos, depois de um ano de viagem, desde a Nigéria, onde os pais a venderam à máfia, que prometeu levá-la para Espanha. Mendigou, prostituiu-se, viveu nas florestas de Tânger, Ceuta e Rabat, mas ainda não conseguiu um lugar nas "pateras" que atravessam o Estreito.
O mês passado telefonou Emmanuel, que vive em Missnana, se tornou pastor pentecostal e tem sida. Dedicou-se a ajudar os companheiros, ensinando-lhes que, segundo a Bíblia, Moisés também atravessou um mar para levar o seu povo à Terra Prometida. Emmanuel dedicou-se a encorajar os companheiros e esqueceu-se de si próprio.
Por toda a costa marroquina há florestas onde milhares de ilegais africanos esperam, em condições desumanas, a oportunidade de atravessar para a Europa. Não têm dinheiro, nem comida, nem medicamentos. Mas têm telemóveis.
Para eles, a comunicação é vital. E a informação. Estão em permanente contacto com as máfias, com as famílias, com os companheiros nas outras "estações" do percurso, com os amigos que chegaram à Europa e lhes poderão enviar dinheiro pela Western Union.
Eles sabem que os ministros dos Negócios Estrangeiros dos países do Sul da Europa e Norte de África estão hoje reunidos no Cairo para discutir a aproximação das margens do Mediterrâneo.
Em contraste com a apatia dos europeus, os milhares de clandestinos para quem o Mediterrâneo é um oceano imenso, intransponível, seguem com toda a atenção as conversas dos ministros.
São, doentes e esfomeados, agarrados aos seus telemóveis, uma estranha e gigantesca manifestação silenciosa a favor da globalização. Da globalização moral.
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