20.4.06

Café Europa


A legenda da fotografia acima é: Fernando Pessoa, Raul Leal, António Botto e Augusto Ferreira Gomes "em flagrante delitro" no café. Mais precisamente no Café Restaurante Martinho da Arcada, em Lisboa, no Terreiro do Paço. Mas, desta vez, não é o poeta a razão da notícia, antes o Café. Leio na última página do Público de hoje que o "Martinho da Arcada, em Lisboa, foi escolhido como um dos Cafés da Europa e será palco das celebrações do Dia da Europa em Portugal, a 9 de Maio. (...)"
Trata-se de uma "iniciativa" da "presidência austríaca da União europeia e vai decorrer nos 25 países comunitários e nos candidatos Bulgária e Roménia". O objectivo é colocar os europeus a pensar e a conhecer melhor os desafios que o nosso continente enfrenta. "Sendo o café um local de relaxamento, convívio e debate, a Áustria decidiu reconstituir os "cafés vienenses" frequentados por políticos, artistas e intelectuais nos finais do século XIX, considerando ser o local ideal para fazer chegar a Europa aos cidadãos, elemento "essencial" para o sucesso europeu".
É sobejamente conhecida a importância dos cafés na vida cultural das grandes cidades europeias. De tal maneira que a iniciativa dos austríacos é uma boa ideia porque se mostra capaz de aproveitar, com um sentido prático, uma ideia luminosa de George Steiner, o grande filósofo judeu que praticamente começa o texto do seu pequeno livro A Ideia de Europa com o parágrafo que a seguir se transcreve:
"A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria preferida de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados pelos gangsters de Isaac Babel. Vão dos cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard passava nos seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo. Não há cafés antigos ou definidores em Moscovo, que é já um subúrbio da Ásia. Poucos em Inglaterra, após um breve período em que estiveram na moda, no século XVIII. Nenhuns na América do Norte, para lá do posto avançado galicano de Nova Orleães. Desenhe-se o mapa das cafetarias e obter-se-á um dos marcadores essenciais da "ideia de Europa"."(p.26, Gradiva, Lisboa, 2005, tradução de Maria de Fátima St. Aubyn).
Lendo a notícia do Público, e relendo as palavras de Steiner, não posso deixar de recordar a importância de certos cafés numa certa fase das nossas vidas. Nomes como A Pastorinha ou Fragas parecem capazes de levantar, ainda, uma espécie de poeira brilhante, quase mágica, ao mesmo tempo que evocam as incertas, longas, loucas, conversas e desconversas que começaram a desenhar, lá atrás, os fundamentos desta ponte de três (e outras) entradas. Não se trata de nostalgia ou de saudade de um tempo perdido, tão só de perceber que nós somos também o nosso passado. E que, se o não soubermos tornar presente, ficaremos todos mais pobres.
Recordo, por isso, com gosto, os cafés bebidos. Os cigarros fumados. Os sonhos, as ideias, as hesitações, as desavenças. E reparo que, nesses momentos, nesse momento das nossas vidas, os cafés estiveram sempre presentes. No Seixal, na Cruz de Pau, em Corroios. Estávamos, mais ou menos conscientes disso, a ser europeus. A criar, à nossa maneira. A inventar, com os nossos recursos. A rir, mesmo que só nós pudéssemos rir das nossas piadas. Discutimos tudo. Fomos tudo. Sonhámos tudo. E isso, caros, a mim ninguém me tira.
Penso, por consequência, que muita da piada desta Ponte, cada um à mesa do seu próprio ciber-café doméstico, nasce do facto de continuarmos, por outro(s) meio(s), noutros tempo e contexto, as conversas por vezes interrompidas, mas sempre retomadas, que começámos num café junto à Escola d'Amora. Conversemos, portanto.
Vai mais uma bica?

3 comentários:

j disse...

Vai, pois! Este texto foi muito bem "tirado" mas acho um exagero a referência aos lugares dessa nossa juventude com iniciais, ainda que maiúsculas. Que te parece? Clandestinos mas não exageremos ;-)

PB disse...

e em Almada ... no "saudoso" café Central ... a tentar vender fotos tipo passe do J. ... e o encontro com a H. dos Murais em que eu e o J trocamos de identidade ... e elas também!!!! lol

j disse...

O Central foi mesmo muito marcante, até porque, para mim, significou um alargar do território físico e afectivo.