22.4.06

Tesoura de Plástico & Erva Verde



Era uma vez um homem que era corcunda e, por esse motivo, andava sempre dobrado para o chão. Enquanto os outros homens olhavam para a frente, para a linha do horizonte, o homem que era corcunda, enquanto caminhava pelas ruas da cidade, olhava sempre para baixo, para a limitada superfície de terra, ou de asfalto, ou de calçada, que aparecia logo à frente das pontas dos seus sapatos pretos. Assim, num primeiro olhar, o homem que era corcunda parecia estar em desvantagem em comparação com os outros homens, que tinham todos largos horizontes, grandes sonhos e imensos projectos. De facto, o homem que era corcunda não tinha largos horizontes, nem grandes sonhos, nem imensos projectos. Mas, porque passava a vida a olhar para o chão que todos os homens pisam, ele via o que os outros não viam: a erva verde e amarela dos jardins, as pedras irregulares dos passeios, as beatas dos cigarros, os buracos no alcatrão, as faixas de tinta das passadeiras para os peões. Era esse o seu segredo, e o seu trunfo. O seu triunfo: ver, encontrar descobrir, os que os outros não viam. Ou perdiam. Ou nem sonhavam que existisse. Dobrava-se, então, um pouco mais para a frente, até as mãos chegarem ao chão. E, enquanto os outros passavam, mais devagar ou a correr, para cima e para baixo, da esquerda para a direita, da direita para a esquerda, com os olhos postos nos grandes horizontes, com as suas cabeças cheias de grandes sonhos e imensos projectos, o homem que era corcunda, ainda mais inclinado para diante, apanhava do chão uma página de jornal rasgada, ou uma moeda de 5 cêntimos, ou uma tesoura de plástico cor de laranja, que alguma criança esquecera sobre a erva do jardim, depois de terminada a brincadeira do fim da tarde. "Pequenos sinais de vida, minúsculas provas da existência. Restos. Rastos de uma passagem." Pensando isto, o homem que era corcunda guardava tudo num dos bolsos e seguia, devagar, de olhos postos no chão, a caminho de casa. Que é o que fazem todos os homens: procuram, e seguem, incessantemente, mesmo que o não digam, ou saibam, esse caminho para casa. Nisso, corcundas ou não, todos os homens são muito parecidos. Tão parecidos que, no fundo, são quase iguais. Quase.

1 comentário:

j disse...

Na vertigem das mil imagens, mil palavras, mil sons, quantas vezes julgamos ver o que apenas olhamos de relance? Dá que pensar, este post, dá que pensar.