2.4.06
Outro Dia das Mentiras
Só a vi de passagem, desviando os olhos do carro da frente por instantes. Estava sentada do outro lado, na berma da estrada. Sobre os ombros, uma espécie de sobretudo cinzento, aberto, mas deslocado na tarde quente. E não havia mais peça de roupa: a que havia deixava ver os seios pendentes, o ventre redondo, inchado, as pernas abertas, dobradas à passagem do trâsito suburbano, a negra neblina do sexo. E havia um homem, de pé, inclinado sobre ela, conversando com ela, parecendo pedir que viesse "para dentro", para "casa", sendo que a casa é um monte imundo de ruínas cheias de sacos, latas vazias, lixos, merda, provavelmente vinho, provavelmente drogas duras, da dureza do betão que encurralou algures esta mulher, lá atrás, e este homem, os quais, de repente, de relance, de passagem, parecem saídos de algum poema de José Emílio-Nelson ("Encontro-o há anos no parque. / (...) O ar é todo urina." Ou: "Pastora de cães. / Cães de pêlo ferrugento das vedações. / Numa terra desfazendo-se varrida.") Procuro esconder o que vi com o manto diáfano da poesia? Eu - que sei eu? Mas foi isto que eu vi quando regressava a casa de carro, numa estrada nacional. A meio da tarde do dia de hoje, dito Dia das Mentiras.
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