9.4.06

O Esqueleto da Tragédia



Como é que começamos a gostar de poesia? Há um mistério bem claro, aqui. Um encantamento que conversa com o ritmo dos versos, com o som e o desenho das palavras, mas também com a presença da pausa, do vazio, dos espaços em branco. Um poema é um desenho habitado por imagens que se vêem a olho nu, uma mancha sobre a clareza da página que é outra forma de limpidez e lucidez. Na poesia, na grande poesia, muito escapa ao nosso entendimento, mas nem por isso deixamos de aprender. Somos desafiados a desaprender, a olhar de novo o que somos, o que existe para além de nós. Um poema confronta-nos com a nossa nudez. E com a nossa mudez. E, por dentro, faz-nos murmurar alguma coisa que não sabemos bem o que é, sílabas de uma linguagem que rasa o desconhecido.

Wislawa Szymborska nasceu em 1923. Em Kornik, próximo de Poznan, na Polónia. A partir dos oito anos passou a viver com os pais em Cracóvia. Estudou literatura polaca e sociologia na Universidade Jaguellonica. Em 1945, no meio dos destroços, publicou um primeiro poema: "Busco a palavra". Não escreveu muito, mas o que escreveu é suficiente para a guindar aos mais altos patamares da poesia europeia dos nossos tempos. Os seus poemas partem muitas vezes de apontamentos existenciais, não raras vezes irónicos, aproveitados para problematizar as relações do homem consigo e com os outros; com as suas experiências quotidianas, mais ou menos trágicas; com a natureza; com a história e o seu absurdo normalizado. Em Portugal, são do meu conhecimento os seguintes livros de poesia da autora (dos quais retirei os elementos bio-bibliográficos supra-referidos):

Paisagem Com Grão de Areia, tradução de Júlio Sousa Gomes, Relógio d'Água, Lisboa, 1998;

Alguns Gostam de Poesia (em conjunto com poemas de Czeslaw Milosz), tradução de Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves, Cavalo de Ferro, Lisboa, 2004;

Instante, tradução (também) de Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves, Relógio d'Água, Lisboa, 2006.

Deste último livro transcrevo, na forma de diálogo aberto com o post de hoje de j. sobre a memória (e pedindo compreensão pela minha incapacidade de manter as suas separações estróficas), o poema "Fotografia de 11 de Setembro"(p. 71). Outra forma de dar a "ouver o esqueleto da tragédia":

Atiraram-se dos andares em chamas.

Um, dois, ainda alguns,

mais acima, mais abaixo.

A fotografia deteve-os na vida

e agora preserva-os

sobre a terra rumo à terra.

Cada um ainda na íntegra,

com rosto individual

e sangue bem guardado.

Ainda há tempo

para os cabelos esvoaçarem

e do bolso caírem

chaves e alguns trocos.

Ainda estão ao alcance do ar,

no âmbito dos lugares

que acabaram de se abrir.

Só duas coisas posso por eles fazer:

descrever este voo

e não acrescentar a última frase.

1 comentário:

j disse...

Belo poema, belo post.