31.12.06

E o Bush?


Completamente triste o espectaculo oferecido pelas televisões de todo o mundo ... as imagens imediatamente antes do enforcamento ... longe me mim insinuar que o Saddam era um santinho ... não o era e merecia ter sido julgado e punido com decência e não a mando dos pseudo polícias do Universo ... Quando é que o "Bush Laden" será também julgado pelos crimes praticados em nome do dEUS petróleo?????

Já devem ter visto mas coloco aqui a caricatura do André Carrilho para a edição de hoje do DN ... Bom Ano Novo e mais decência ... é o que desejo ...

Não me peças

um balanço do ano, por exemplo, nem sequer um balanço de coisa alguma. escrevo apenas o indizível - deixo em branco a página e estes dias de balancetes. não me peças isso nem o seu contrário, que estão esgotadas as agendas de capa preta e folhas brancas, que é uma forma comercial de te dizer que estão esgotados os dias e as semanas e os meses e o ano e há ainda um vazio no prego do calendário. (...) não é exactamente um vazio: balança, no lugar do tempo, o desejo, entristecendo.

Este poema

O LADO DE FORA

Eu não procuro nada em ti,
nem a mim próprio, é algo em ti
que procura algo em ti
no labirinto dos meus pensamentos.

Eu estou entre ti e ti,
a minha vida, os meus sentidos
(principalmente os meus sentidos)
toldam de sombras o teu rosto.

O meu rosto não reflecte a tua imagem,
o meu silêncio não te deixa falar,
o meu corpo não deixa que se juntem
as partes dispersas de ti em mim.

Eu sou talvez
aquele que procuras,
e as minhas dúvidas a tua voz
chamando do fundo do meu coração.

Manuel António Pina

28.12.06













Fiquei sem computador pq uns "artolas" (por enquanto não vou dizer o nome da empresa) em tempos mexeram no mac e não aparafusaram como deve ser os dissipadores que fazem o arrefecimento dos processadores e um deles pura e simplesmente ARDEU e queimou a Santa Placa Mãe :-) ... deixo uma foto do Mac esventrado ... o dissipador é aquela estrutura metalica às tirinhas ...

26.12.06

O Problema do Natal (3)

Os restos, caixas desmanteladas, plásticos rasgados, papéis de muitas cores, amachucados em bolas de todos os tamanhos, lixos de toda a espécie, espalham-se agora a partir dos caixotes ou dos recipientes de reciclagem, invadindo os passeios e as calçadas. As famílias desviam-se para passar e reclamam, com certo azedume, contra o facto de não se ter feito a devida recolha, de as ruas estarem sujas, os excessos de Natal que quase todos cometemos. Para o ano, e apesar da crise, há mais. Assim queira Deus...

Este silêncio.

Esta noite

Esboço a palavra que apago, molhando a ponta do dedo na língua (mordendo as mãos?). Numa BD, seria um balão em branco. Assim, exposto e mudo, é apenas silêncio nocturno, à deriva. Na saliva.

25.12.06

Esta manhã

Há, neste amanhecer, um silêncio feito de cobertores puxados por cima da cabeça, aconchegando sonhos e abraços ternos.

Há embrulhos desfeitos pela casa, fitas e risos coloridos. O gesto é tudo e outros jogos nocturnos tombaram de cansaço feliz, eram o quê? umas três, quatro da madrugada? Sobrou comida (ainda bem!) e um rol de histórias antigas, sempre repetidas com o mesmo entusiasmo.

Repara como a criança agarra a boneca nova, neste silêncio feito de lençóis mornos e mantas pesadas, aconchegando princesas e dragões. Nota como esta, um pouco mais velha, até sonha com o momento em que vai pular da cama para voltar a jogar mil vezes o jogo novo – mas dorme ainda. E adiante, ao fundo do corredor, como a cama mais larga é ainda maior, no aperto carinhoso de dois corpos.

Deslizo pela casa e espreito, numa janela, a rua deserta. Apenas pássaros e sinos, ao longe. Percorro os quartos vazios, imaginando as respirações da manhã mais tranquila do ano e sinto um dorido e quase febril desejo de fazer nascer uma família.

24.12.06

Ainda o Natal

Contar as horas para mais uma composta explosão da família nuclear, enquanto este frio de prumo morde o corpo. Dizer: para o ano serei intensamente feliz. E acreditar nisso como na realidade de uma mão cheia de pinhões. Decorar uma árvore, da raíz aos ramos mais altos, e saber dizê-la em todas as estações, como um poema favorito, que vai ganhando flores e frutos e, às vezes, perdendo folhas, na agitação jardineira do poeta.

Com(tra) a Letra de Fernando Assis Pacheco


Certos poetas escrevem e fica escrito. Há uns tempos, no "Actual" do Expresso Joaquim Manuel Magalhães escrevia sobre isto e dava o exemplo de Jorge de Sena, criador alérgico a revisões da obra produzida. Outros colocam-se no pólo oposto: rescrevem, corrigem, apagam, acrescentam, emendam em sucessivas edições o escrito ao longo de uma vida. Carlos de Oliveira fica como exemplo maior deste tipo de autores, tanto na prosa como na poesia, com a sua atitude de permanente recomposição do que foi escrevendo. Dos vivos há muitos outros exemplos, um dos melhores (para além do próprio Joaquim Manuel Magalhães) será Herberto Helder, cuja Poesia Toda tem sido sucessivamente rescrita e reconfigurada em "poema contínuo", organismo vivo e voraz que se consome e é o alimento de si mesmo em permanente invenção.
Todo este alongado prólogo vem a propósito de um poeta de que falámos ontem à noite e de que gosto muito, ainda que não o tenha relido nos últimos tempos: Fernando Assis Pacheco. E, particularmente, de um poema seu que me comove de forma profunda e inequívoca. E que o poeta, se me for permitida a ousadia, não foi feliz... mudando-o. Trata-se de "Com a Tua Letra", um texto de Cuidar dos Vivos, o primeiro livro de Assis Pacheco, editado em Coimbra, em 1963. Ei-lo:

"Fala-se de amor para falar de muitas
coisas que entretanto nos sucedem.
Para falar do tempo, para falar do mundo
usamos o vocabulário preciso
que nos dá o amor.

Eu amo-te. Quer dizer: eu conheço melhor
as estradas que servem o meu território.
Quer dizer: eu estou mais acordado,
não me enredo nas silvas, não me enredo,
não me prendo nos cardos, não me prendo.
Quer também dizer: amar-te-ei
cada dia mais, estarei cada dia
mais acordado. Porque este amor não pára.

E para falar da morte; da enorme
definitiva irremediável morte,
do carro tombado na valeta
sacudindo uma última vez (fragilidade)
as rodas acendedoras de caminhos
- eu lembraria que o amor nos dá
uma forma difícil de coragem,
uma difícil, inteira possessão
de nós próprios, quando aveludada
a morte surge e nos reclama.

Porque eu amo-te, quer dizer, eu estou atento
às coisas regulares e irregulares do mundo.
Ou também: eu envio o amor
sob a forma de muitos olhos e ouvidos
a explorar, a conhecer o mundo.

Porque eu amo-te, isto é, eu dou cabo
da escuridão do mundo.
Porque tudo se escreve com a tua letra."

Ora este poema "insuportavelmente belo" foi republicado em A Musa Irregular, volume editado pela saudosa Hiena Editora no ano de 1991. Em "Nota" final, Assis Pacheco explica que Cuidar dos Vivos foi expurgado "dos poemas mais caducos", tendo outros (como no caso de "Com a Tua Letra") sido reduzidos "em extensão" ou sofrido "algumas correcções vocabulares". Tudo em nome de "uma escrita modesta", marca ética e estética de um autor enorme que recusou, sem dúvida, a ênfase e o sentimentalismo mas que, no caso em apreço, pecou por excesso de rigor, pois nem sempre "menos é mais". Vejam o que sobrou do poema de 63 - apenas isto:
"Porque eu amo-te, quer dizer, estou atento
às coisas regulares e irregulares do mundo.
Ou também: eu envio o amor
sob a forma de muitos olhos e ouvidos
a explorar, a conhecer o mundo.
Porque eu amo-te, isto é, dou cabo
da escuridão do mundo.
Porque tudo se escreve com a tua letra."
Das cinco estrofes da versão de 63 resistiram apenas duas, as últimas, redução que elimina a espécie de introdução à matéria do poema (falar do amor, falar de muitas coisas através dele) que é a primeira estrofe dessa versão e o seu desenvolvimento/expansão (as duas estrofes seguintes, as mais longas, respectivamente uma oitava e uma décima), onde se trata do conhecimento das coisas, do "território" e das suas "estradas", bem como da morte ("definitiva irremediável morte"). Em 91, o poema fica reduzido a um quarto (os 31 versos iniciais passaram a... 8), perdem-se pelo caminho imagens assombrosas de beleza e sugestão como aquela das "rodas acendedoras de caminhos" ou a "forma difícil de coragem" que o amor nos proporciona. Infelizmente. Infelizmente, também, não tenho eu agora acesso ao original de Cuidar dos Vivos, de 63 e, por isso, não posso saber se assis Pacheco noutros casos foi mais certeiro e justo na sua tarefa de se ler a si próprio. Leio "Com a Tua a Letra" na Antologia da Poesia Portuguesa 1940 - 1977, de Maria Alberta Menéres e E.M. de Melo e Castro, Moraes, 1979, 2º volume, pp. 305/306. Um dos melhores poemas de amor que conheço, um dos mais altos momentos poéticos deste 2º volume e desta antologia. Um poema que já não existe como eu desejaria na obra poética do seu autor. Mas um poema que existe para mim.

O problema do Natal (2)

Lado a lado, no passeio, vão conversando:
- E então, conseguiste resolver o problema das prendas deles?
- Sim, já tratei disso. Vai tudo corrido a livros!

Desportos de Inverno


fui do Atlético de Madrid no tempo de Futre e do Barcelona de Figo; agora sou do Chelsea de Mourinho e dos outros portugueses que ele para lá levou. Nem para todos, porém, se inclina igualmente o meu coração: por exemplo, o Manchester United de Cristiano Ronaldo e de Carlos Queirós não me merece grande simpatia (eliminação da Liga dos Campeões à parte!), embora me delicie com as invenções, a força, a elegância e a velocidade do Cristiano Ronaldo.
Uma das razões para este afeiçoamento a certos clubes estrangeiros, por intermédio de jogadores ou (caso único e very special) de um treinador nacionais, deve ser, por certo, o facto de serem clubes habitualmente perdedores, "anti-sistema" (seja este simbolizado pelo Real Madrid, que Figo também representou mas que não suscitou nunca paixão idêntica à do Barça, ou pelo Manchester United...) e que, com eles, (re)começaram a ganhar. O Atlético de Madrid não foi campeão de Espanha, mas ganhou duas Taças na época de Futre. O Barcelona de Figo ganhou tudo, menos a Liga dos Campeões (mas ganhou uma Taça das Taças com uma exibição fulgurante do rapaz da Cova da Piedade). O Chelsea de Mourinho continua a ganhar, com grande estilo e emoção, na Inglaterra, faltando-lhe o título europeu que Mourinho mais anseia.
Dado o pouco entusiasmo que as nossas cores clubísticas têm despertado nas almas sedentas de beleza e alegria que nos habitam, resta-nos, pois, procurar conforto e aconchego nas camisolas operárias e lutadoras do Chelsea... que jogarão, ironia do futebol, com o Porto um destes dias. Vamos torcer por quem?

23.12.06

fazer nascimentos

"(...)

As coisas que não têm nome são mais pronunciadas
por crianças.

(...)

No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor dos
passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos –
O verbo tem que pegar delírio.

(...)"

Manuel de Barros, Uma didáctica da invenção

O problema do Natal

Uma mulher, numa livraria, ao telefone: "Olha, encontrei este, achas que o Manel ia gostar? (...) Queres que compre e te resolva o problema?"

22.12.06

A voz das árvores

O cemitério é pequeno e novo, ainda com muita terra rasa, como alguns olhares que se cruzam. Tem uma árvore em cada canto. Enquanto o padre diz uma oração, olho essas árvores e recordo os sinais que Fernando Alves semeou na telefonia, no dia seguinte ao telefonema que encheu de tristeza a nossa casa das notícias. Lembrava ele “a voz que entrelaça notícias, como se dissesse árvores, árvores apenas, sem adornos”. Quatro árvores, uma em cada canto, e um estúpido buraco no chão. Daí a pouco, outra vez, o arrepio da terra na madeira, engolindo, definitivamente, aquela “voz doce que entrelaça notícias, enquanto se faz ave para longe, para o absurdo longe”.

Este lugar chama-se Rostos. Lembro-me que o de Leonor Colaço ruborizava, às vezes, nas maçãs de pele muito clara. Rostos. A partir de hoje, estes terão sempre uma voz doce, entrelaçando árvores, “árvores apenas, sem adornos”.

2006

Gosto das edições de balanço de final de ano dos jornais e das revistas, forma de acertar contas e pesar um certo período de tempo que foi meu (nosso) e passou. O suplemento "6ª" do DN apresentou hoje as suas escolhas de 2006 de filmes, discos e livros, revisão oportuna da matéria dada, não isenta de riscos e equívocos, mas por isso também interessante. Dois exemplos:
primeiro, na lista dos "dez melhores DVDs «clássicos» lançados em 2006" (p.22) não aparece nenhum dos filmes de Visconti (Obssessão, A terra Treme, etc) ou de Rossellini (Roma, Cidade Aberta ou Viagem na Itália), editados nesta última quinzena de Dezembro; fica também de lado a edição de sonho da dupla visão de Scorsese sobre o cinema americano e o cinema italiano, acabadinha de chegar aos escaparates (confirmem no suplemento concorrente "Y" do Público de hoje!): consequência de fazer balanços do ano antes do fim do ano;
segundo, nas escolhas dos livros, elas surgem aglutinadas entre ficção (nacional/internacional) e não ficção, o que é uma opção absolutamente estrambólica e indevida. Então "ficção" não é designação para obra ficcional, de maior ou menor desenvolvimento/aprofundamento (romance, novela, conto...) da matéria narrativa, com personagens, intriga (ainda que rarefeita ou escassa), narrador, tempo e espaço? Pois parece que não! Na categoria "ficção nacional" (p.p. 28/29), pasme-se, surgem nada menos, nada mais do que 5 livros de... poesia! Obras de Fiama, António Osório, Vasco Graça Moura, F. Echevarria e Gastão Cruz, todos altíssimos poetas, de todos apenas Graça Moura, que eu saiba, com obras de ficção publicadas. País de poetas, mas não de ficcionistas, Portugal! Pois. De resto, o equívoco mantém-se na categoria da "ficção internacional" (p. 30), que inclui 3 livros de poesia: Harmónio de W. Stevens, Residência na Terra de Neruda e Paraíso Perdido, de Milton (pese embora se possa alegar que o clássico de Milton seja um poema épico, portanto, essencialmente narrativo... não sendo prudente, entretanto, sobrepor o ficcional e o narrativo). Critérios muito amplos para definir "ficção", portanto. Mas talvez isto não importe assim tanto; talvez as categorias sejam todas falíveis (umas mais que outras, valha a verdade!); obviamente, o que importa é ler, e ler livremente: a poesia como ficção, o romance como poema, o drama como reportagem... talvez; o que é que acham?
Quanto a mim, aproveito agora o balanço dos balanços e apresento, também, descaradamente as minhas 6 escolhas de 2006. Cá vão elas:
1) livro de poesia do ano: Voz Consonante, traduções de poesia de António Ramos Rosa;
2) outro livro do ano: Pós-Guerra. História da Europa desde 1945, de Tony Judt;
3) série televisiva do ano (surpresa): Deadwood, (primeira e segunda temporadas), de David Milch (que ninguém parece ter descoberto ainda!)
4) outra série televisiva do ano: A Feira da Magia, (segunda temporada) de Daniel Knauf (que toda a gente já descobriu!);
5) filme do ano: os dois filmes-documentos do realizador austríaco que vimos (?) no festival de cinema independente de Lisboa sobre sobreviver nas megacities e trabalhar sabe Deus como e onde!;
6) blogue do ano: este, o nosso, aqui, no umbigo. Bingo!

21.12.06

Freud, pelos cafés

Quero um sonho!

20.12.06

O serão do escritor

Agarrou a palavra madeira e esculpiu-lhe o rosto de outra palavra. Lentamente, surgiram os contornos, as curvas, as rugas, as imprecisões de sentido. De seguida, escolheu uma pedra e continuou o labor. Com o ferro quente, moldou mais um verbo, para temperar a acção. As mãos, molhadas, mergulharam depois na palavra barro, inventando homens, mulheres, bichos extraordinários e outros nomes. Sobre a banca, foram-se acumulando farpas, lascas, estilhaços, alguma lama e uma indecifrável poeira, a que se juntariam mais tarde algumas gotas de sangue. Já de madrugada, com os dedos entrapados, imobilizou o pé na roda, pousou o cinzel, o escopro e o martelo, dando por terminada mais uma história.

Antes de se dirigir à sala, passou pela cozinha, abastecendo o copo de whisky com duas pedras de gelo. Escolheu um DVD, colocou-o dentro da gaveta retráctil do aparelho e recostou-se no sofá. Carregou no botão play do comando e preparou-se para saborear um novo episódio de Deadwood.

Sol Star (left), and Seth Bullock (right)

Deadwood: Wild Bill Hickok / James Butler Hickok (1837-1876)


James Butler Hickok was born in Troy Grove, Illinois, on May 27, 1837, and was shot dead in a saloon in Deadwood, Dakota Territory, on August 2, 1876. Famous for his lethal gun skills, as well as his professional gambling, he was a U.S. town marshal who unsuccessfully tried show business for a while after he got fired from his marshal job for shooting more than just bad guys.

19.12.06

Deadwood: 10!

leio, é como quem escuta

"Não vazes tantas vezes vozes rente ao vento
e não escutes os pássaros nem mesmo o mar
não oiças sequer o vento se soprar
ouve o tempo passar escuta a sua voz
pois o tempo tem voz o tempo fala"

(...)

Ruy Belo, Um Dia Uma Vida

17.12.06

escrevo, é como quem diz

o rosto transpira uma luminosidade sonolenta, cansada, mas doce
Como aquelas fotos, esbatidas, que parecem tiradas de um sonho? Sim, mas essas não transmitem calor a esta palma da mão.

digo que me sinto a esgotar-te a alegria dos dias
Espremes o limão, com um pouco de manteiga, sobre as finas tiras de carne, que a falta de apetite vai deixar quase intactas. Comento que é tradicional. Corto uma lasca de peru recheado, numa paródia triste à época festiva.

bebes água e falas do mistério das nuvens, talvez cúmulos, talvez nimbos
Com golpes de asa, recordamos as guloseimas da infância. Num frame, vislumbro a promessa da serenidade; noutro, o esboço de uma despedida.

tento saborear o vinho, tinto do Douro
Há, em cada gole, um desejo de viagem mas as mãos, num inquieto repouso, anunciam que a neve encerrou todos os caminhos. Procuras lembrar-te do nome daquele que, se bem me lembro, te fez tombar as pálpebras, de prazer.

não me perguntas (talvez adivinhes, talvez pouco importe) se há nuvens no meu céu
Diria assim: uma fina neblina, uma poeira do mar que não vimos juntos, prisioneiros da sombria quadrícula da cidade.

conta-se pelos dedos, o silêncio
Pode ser o mais aprazível dos encontros ou um doloroso aperto no peito. Algum dia, talvez, o mais perfeito acorde, depois de mil canções trauteadas, ao volante, a caminho.

iogurtes, fiambre, leite, alguma fruta
A tua lista das compras é um poema, como alguém já cantou. Por favor, digite o seu origami, pediria a empregada da caixa, intrigando a fila de idosos vizinhos, de porta-cêntimos em riste.

ofereces-me a testa, para um beijo, que é como quem diz

Realismo & Idealismo

Gosto muito do realismo & da lama de Deadwood... mas protegido do frio, na minha sala de trabalho, com a chávena de chá quente ao lado, a fumegar. Não me convidem, por isso, para calçar as botas com esporas, montar e ir desbravar o Oeste, okay? Prefiro ligar, agora mesmo, o leitor de DVDs... se não se importam.

A alma (americana) & a lama



Agora que vos "apresentei" Deadwood, deixem-me falar sobre alguns (apenas alguns!) dos aspectos, para mim, mais fascinantes da série.

Realismo.
Em primeiro lugar, o efeito de realismo que vitaliza as imagens, visível, desde logo, no ar de coisa em construção do Campo. É, de resto, o próprio Campo que aparece, nesta medida, como a grande personagem da série, um organismo vivo que vai crescendo, funcionando os indivíduos como elementos de um todo que é mais do que a soma das suas partes. As difíceis condições de sobrevivência, a lama, a sujidade, a brutalidade são óbvias indicações do que se prentende mostrar e dar a pensar: que a América foi (e é!) tanto a terra dos sonhos grandiosos, como a dos maiores pesadelos. Vejo neste ponto uma conexão possível entre Deadwood e o fabuloso épico scorsesiano Gangues de Nova Iorque, pois em ambos a dimensão social e colectiva enquadra os indivíduos sem os esmagar. Mas, também, sem os explicar completamente.

Heróis.
Assim, em segundo lugar, torna-se anacrónico falarmos de heróis: há muito que eles desapareceram das imagens dos westerns de Hollywood, primeiro no cinema, agora na televisão. Dizer que já não há heróis é um lugar-comum, mas ele não se tinha manifestado ainda com tamanha força numa série televisiva: por onde se terão perdido os heróis clean de Bonanza? (recuso-me a falar dessa coisa absurda, chamada Jovens Cowboys, nem sei se conhecem!...) Em Deadwood não há lugar para eles: até as "lendas" do Oeste, como "Calamity" Jane ou Wild Bill Hickock, com quem nos cruzamos logo nos primeiros episódios, estão longe, demasiado longe de qualquer ideia de heroísmo. Trata-se, somente, de sobreviver num meio hostil. E de enriquecer o mais depressa possível. O que exige coragem, determinação e sorte. Mas, também, cinismo, manha, violência brutal. Darwin anda por aqui: o direito do mais forte à sobrevivência. Mas sobre isto muito, quase tudo, fica por dizer.
Linguagem.
A propósito do dizer, este é outro aspecto que aumenta o fascínio da série. E outro dos modos de construir o seu efeito de realismo. A maneira como a linguagem é tratada, conhecendo o espectador alguma coisa de inglês, contribui decisivamente para a construção plena das personagens: o colorido dos discursos, monólogos e diálogos de Al Swearegen, Seth Bullock, do Reverendo, do Médico, de Alma Garret ou de E.B., etc., cheios de calão ordinário (Swearegen) ou dos maneirismos aristocráticos de Alma, são a música ruidosa e encantatória que dá sabor às imagens, em despiques ora pícaros, ora épicos que, infelizmente, só em certos momentos a tradução consegue captar e transmitir. Mas, justiça seja feita ao tradutor, como traduzir as falas de Seaweregen com cem palavras em que cinquenta por cento das mesmas é constituída pela palavra "fucking"? Só vendo! E ouvindo!
Personagens (1).
Há Al Swearegen, a alma mater do Campo, e Seth Bullock, o homem que procura manter a verticalidade moral num meio insano. Do equilíbrio conflituoso dos dois, feito de mútua fascinação e repúdio, emerge parte fundamental do equilíbrio lógico e narrativo da intriga. Al é o dono do salloon, o homem sem escrúpulos, controlador do álcool e da prostituição, duas das áreas económicas mais rentáveis do Campo, capaz de mandar eliminar quem se atravessar no seu caminho (mas, por outro lado, comovedor na sua humana fragilidade, violenta e desamparada). Seth é aquele que busca, intransigente, um equilíbrio intímo e público impossível, pois os seus princípios morais, puros e duros, não se coadunam com um mundo dominado pelas paixões (de diversa ordem) a que ele também não consegue escapar. O trabalho interpretativo de Timothy Oliphant, oposto ao de Ian McShane, é então o de uma constante interiorização, de recalcamento de impulsos, de negação da violência que, todos sabemos, incluíndo ele próprio, germina no seu interior: notem o modo como a boca, o olhar, o rosto se torcem e contorcem em certos momentos. McShane, pelo contrário, deita tudo, literalmente, cá para fora: saliva, sangue, esperma, insultos, gritos, raiva, ódio. Só a urina lhe pregará, a certa altura, uma partida quase mortal, justamente por se recusar a sair do seu corpo!
Personagens (2).
Se estas duas são personagens-chave da série, outras há absolutamente inesquecíveis: a esplendorosa Alma Garret; o amigo judeu de Seth; o inenarrável dono do Hotel; o jornalista especioso; o médico marcado por um passado atormentador e desconhecido; o reverendo que cairá na loucra e na doença; o rival de Swearegen; o chinês que alimenta os porcos com cadáveres humanos e outros; vilões de toda a espécie, jogadores de póquer, prostitutas, etc., uma galeria de notáveis que inclui verdadeiras lendas, como os já referidos Wild Bill Hickock e "Calamity" Jane. Magnífica paisagem humana.
Política (para terminar).
Deadwood é um Campo na zona de fronteira: ilegal, sítio ainda fora do território administrativo do Estado Americano. Microcosmos do pioneirismo de ocupação do Oeste, o Campo é também metáfora da constituição da América (nova aproximação a Gangues de Nova Iorque). Notável, neste sentido, é o modo como a problemática política é desenvolvida pelos criadores da série. Pelos seus olhos somos levados a ver como a América se formou, em parte, sobre doses massivas de violência, corrupção, mentira e ambição desmedidas, tanto dos indivíduos, como do aparelho político, administrativo e judicial do estado que se ia construindo à medida que se construía o país. Não há lugar a ilusões: se a América é o símbolo da liberdade e a terra dos sonhos e das oportunidades, estes estão indissociavelmente ligados, como a carne está ao osso, à lama e à sujidade ensanguentada do solo americano. Vamos ver estas imagens e ler alguns dos versos do velho Walt Whitman?

Retrato de uma sombra com cortina

"A claridade é, repetidas vezes, um pesado rumor de lâminas. Cortes. Golpes quase dentro do coração.
Estou nu e sei-o. (...)"

LFP, Tundra, 1988

15.12.06

Tom Waits, Road To Peace, Orphans Brawlers Bawlers & Bastards

Young Abdel Mahdi (Shahmay) was only 18 years old,
He was the youngest of nine children, never spent a night away from home.
And his mother held his photograph, opening the New York Times
To see the killing has intensified along the road to peace

There was a tall, thin boy with a whispy moustache disguised as an orthodox Jew
On a crowded bus in Jerusalem, some had survived World War Two
And the thunderous explosion blew out windows 200 yards away
With more retribution and seventeen dead along the road to peace

Now at King George Ave and Jaffa Road passengers boarded bus 14a
In the aisle next to the driver Abdel Mahdi (Shahmay)
And the last thing that he said on earth is "God is great and God is good"
And he blew them all to kingdom come upon the road to peace

Now in response to this another kiss of death was visited upon
Yasser Taha, Israel says is an Hamas senior militant
And Israel sent four choppers in, flames engulfed, tears wide open
And it killed his wife and his three year old child leaving only blackened skeletons

It's found his toddlers bottle and a pair of small shoes and they waved them in front of the cameras
But Israel says they did not know that his wife and child were in the car
There are roadblocks everywhere and only suffering on TV
Neither side will ever give up their smallest right along the road to peace

Israel launched it's latest campaign against Hamas on Tuesday
Two days later Hamas shot back and killed five Israeli soldiers
So thousands dead and wounded on both sides most of them middle eastern civilians
They fill the children full of hate to fight an old man's war and die upon the road to peace

"And this is our land we will fight with all our force" say the Palastinians and the Jews
Each side will cut off the hand of anyone who tries to stop the resistance
If the right eye offends thee then you must pluck it out
And Mahmoud Abbas said Sharon had been lost out along the road to peace

Once Kissinger said "we have no friends, America only has interests"
Now our president wants to be seen as a hero and he's hungry for re-election
But Bush is reluctant to risk his future in the fear of his political failures
So he plays chess at his desk and poses for the press 10,000 miles from the road to peace

In the video that they found at the home of Abdel Mahdi (Shahmay)
He held a Kalashnikov rifle and he spoke with a voice like a boy
He was an excellent student, he studied so hard, it was as if he had a future
He told his mother that he had a test that day out along the road to peace

The fundamentalist killing on both sides is standing in the path of peace
But tell me why are we arming the Israeli army with guns and tanks and bullets?
And if God is great and God is good why can't he change the hearts of men?
Well maybe God himself is lost and needs help
Maybe God himself he needs all of our help
Maybe God himself is lost and needs help
He's out upon the road to peace

Well maybe God himself is lost and needs help
Maybe God himself he needs all of our help
And he's lost upon the road to peace
And he's lost upon the road to peace
Out upon the road to peace.

2046

Tenho de rever o filme ... tenho em DVD (original)

Memento (9)






















Só agora pude ver. Grande argumento. Grande filme. Nota NOVE.

14.12.06

Madeira Viva


"A dor ou os danos não são o fim do mundo, nem o desespero ou as putas das tareias. O mundo acaba quando morremos. Até lá, ainda temos muito que sofrer. Aguente como um homem e riposte." Filosofia barata? Oiçam e vejam Al Swearengen/Ian McShane, o Tony Soprano de Deadwood, a dizer isto (e muitas outras coisas) e depois falamos... A melhor série western de sempre?

What A Wonderful World (?)

12.12.06

No corpo tenso

"O tango é o primeiro sorriso de quem atravessou um mar de lágrimas"

Horacio Ferrer, no programa TSF Pessoal e Transmissível de Carlos Vaz Marques

Pegar ao trabalho

Apetecia-me esculpir o silêncio mas reconheço que isso não daria para pagar a conta do supermercado.

Gomez II

Gomez

10.12.06

Menos um bandido à face da terra ...



Intimidade

Era de noite, disseste
um dia. Como quem estende uma corda de funambulismo, entre dois beijos.

"O que é que te comove?"

Cereja Japonesa

Ela desvenda-lhe a flor, que o vento das mãos faz baloiçar suavemente. Ele sorri, um pouco embaraçado, e colhe uma pétala, orvalhada.

Escuta: marulhar, marulhar...
maré cheia.

9.12.06

Tão simples

free as a hug


Obrigado.

Rugas de Expressão

Vento do norte. Sei, porque é assim oblíqua a chuva nesta janela. Uma guitarra. Uma voz. Uma, duas vezes. Um piano tacteado. Vento do norte. Céu de chumbo, não há outra maneira de o dizer. Engole o azul, acrescento, wireless. Outra voz, para o par. Pouco depois, o azul, pela janela salpicada de lágrimas. Dir-se-ia uma luta entre as sombras e o reflexo mais puro da luz. De que é feita a magia da música? pergunto, notando uma nova mancha de humidade na parede, por cima da janela da direita, mesmo em frente da pilha de jornais, tal e qual como antes do adeus.

take this sinking boat and point it home
we’ve still got time
rase yo
ur hopefull voice you have a choice
you’ve made it now

De manhã, no barbeiro.

Um velho magro chega e despe o sobretudo, pendurando-o, com mil cuidados, num dos cabides do armário onde os clientes repousam os casacos e a casa guarda o encosto de cabeça para as barbas. Pega na vassoura. Um dos quatro homens das tesouras diz-lhe para se aplicar, para merecer as broas. Risos. Benfica, Sporting, o DN do dia, Caras antigas. A vassoura penteia o chão, em riscos pretos, castanhos, grisalhos. Junto à terceira cadeira, a contar da porta, algumas melenas brancas parecem penas de um pássaro ancestral, sábio. No final, um monte de cabelo. Quantas histórias? Quanto desespero? Quantos afagos?

É a minha vez. O sr. Monteiro sorri-me, cúmplice, enquanto vira a almofada da cadeira, com a mesma destreza com que um barman rodopia uma garrafa de gim, antes do cocktail. O costume? Vejo que continua com a barba por fazer… Que sim. Para o ano talvez mude, confidencio-lhe. Acrescento: talvez troque a barba-a-dias por umas generosas patilhas, para emoldurar as rugas. Acena com a cabeça, discreto, e pega na máquina. Fecho os olhos e sinto o telemóvel a vibrar, no bolso da camisa, perto do coração.

8.12.06

Inverno

De manhã, quando abriu a porta do carro, o frio atingiu-lhes os rostos descobertos. "Deve estar a nevar na Serra...", disse ela. Ele respondeu: "Estamos a muitos quilómetros da Serra, não?" Mas ela sabia o que dizia. As notícias televisivas da tarde confirmaram: nevava, fortemente, na Serra. Ainda à mesa, depois do almoço, encostou a cabeça ao peito dele e não disse mais nada. E foi então que aconteceu: a sua respiração morna embaciou, de repente, as lentes frias dos óculos dele.

6.12.06

Tom Waits - I Don't Want To Grow Up

Downtown Train ... (9.9)




















(Tom Waits 1985)

(para mim, talvez a melhor musica de Tom Waits)

Outside another yellow moon
Has punched a hole in the nighttime, yes
I climb through the window and down to the street
And I'm shining like a new dime
The downtown trains are full with all of those Brooklyn girls
They try so hard to break out of their little worlds

Well you wave your hand and they scatter like crows
They have nothing that will ever capture your heart
They're just thorns without the rose
Be careful of them in the dark
Oh, if I was the one you chose to be your only one
Oh baby can't you hear me now, can't you hear me now

Will I see you tonight on a downtown train
Every night it's just the same, you leave me lonely now

I know your window and I know it's late
I know your stairs and your doorway
I walk down your street and past your gate
I stand by the light at the four-way
You watch them as they fall, oh baby they all have heart attacks
They stay at the carnival, but they'll never win you back

Will I see you tonight on a downtown train
Where every night, every night it's just the same, oh baby
Will I see you tonight on a downtown train
All of my dreams they fall like rain, oh baby on a downtown train

Will I see you tonight on a downtown train
Where every night, every night it's just the same, oh baby
Will I see you tonight on a downtown train
All of my dreams just fall like rain, all on a downtown train
All on a downtown train, all on a downtown train
All on a downtown train, a downtown train

5.12.06

4.12.06

Linhas Tortas

Uma colega de Economia em vez de "gastos" escreveu "gatos" no enunciado do teste. Eu vi os felinos felizes a escrever direito por entre as linhas tortas da Grande Depressão. Na aula, ao interpretarem um poema de Pessoa/Ricardo Reis, alguns dos alunos confundiram a palavra "efémero" com a palavra "inferno". E talvez errando assim tenham involuntariamente, quem sabe, muito mais razão.

O Homem Árvore Pássaro

Os operários do absurdo têm fatos castanhos de trabalho e botas sujas de lama. Erguem os braços, lançando as enxadas à terra molhada, arrastando-a dos montículos para a pequena vala. Os primeiros torrões sobre a madeira são como socos na boca do estômago. Algumas pessoas afastam-se, com lágrimas e rostos fechados.


Este homem permanece encostado ao tronco de uma árvore. Parece-me que pressiona o corpo contra a casca e carrega mais os sapatos no chão ensopado. Acredito que esteja a criar aqui algumas raízes, como já terá feito noutras despedidas. Sinto que, ainda assim, não vai perder as asas.


Confirmo isso mesmo, no desassossego da noite, ao escutar-lhe a respiração renovada.

9.6 ...

9

7.5

3.12.06

Azul

Um ponto final atinge-te no centro do peito, sobre o lado esquerdo. Dói-me esta razão, como se a lua quase cheia anunciasse um eclipse. Maré de blues.

sms sem pontuação

as palavras naufragam no pequeno visor de cristais liquidos as lágrimas não são bytes de terceira geração como já anotou certo poeta

30.11.06

Nick Cave & Bad Seeds, O Children, The Lyre Of Orpheus (Disc 2)

NICK CAVE & THE BAD SEEDS

"O Children"

Pass me that lovely little gun
My dear, my darting one
The cleaners are coming, one by one
You don't even want to let them start

They are knocking now upon your door
They measure the room, they know the score
They're mopping up the butcher's floor
Of your broken little hearts

O children

Forgive us now for what we've done
It started out as a bit of fun
Here, take these before we run away
The keys to the gulag

O children
Lift up your voice, lift up your voice
Children
Rejoice, rejoice

Here comes Frank and poor old Jim
They're gathering round with all my friends
We're older now, the light is dim
And you are only just beginning

O children

We have the answer to all your fears
It's short, it's simple, it's crystal dear
It's round about, it's somewhere here
Lost amongst our winnings

O children
Lift up your voice, lift up your voice
Children
Rejoice, rejoice

The cleaners have done their job on you
They're hip to it, man, they're in the groove
They've hosed you down, you're good as new
They're lining up to inspect you

O children

Poor old Jim's white as a ghost
He's found the answer that was lost
We're all weeping now, weeping because
There ain't nothing we can do to protect you

O children
Lift up your voice, lift up your voice
Children
Rejoice, rejoice

Hey little train! We are all jumping on
The train that goes to the Kingdom
We're happy, Ma, we're having fun
And the train ain't even left the station

Hey, little train! Wait for me!
I once was blind but now
I see Have you left a seat for me?
Is that such a stretch of the imagination?

Hey little train! Wait for me!
I was held in chains but now I'm free
I'm hanging in there, don't you see
In this process of elimination

Hey little train! We are all jumping on
The train that goes to the Kingdom
We're happy, Ma, we're having fun
It's beyond my wildest expectation

Hey little train! We are all jumping on
The train that goes to the Kingdom
We're happy, Ma, we're having fun
And the train ain't even left the station

28.11.06

26.11.06

Dos abraços

Ela e outros dois passageiros do maldito voo foram colegas de curso de M. Ela era amiga do Quim, um amigo que ando para rever há muito. Mandei-lhe um abraço forte, por sms. Ele agradeceu. Sinto que não chega. Vou combinar um encontro, em breve. Porque um abraço tem que ter outro, entrelaçado.

Celta

"Tudo somado, o que um jornalista faz - se for a sério, e a Zé era - é decifrar vidas. Não há mais nada. E faltavam muitas, demasiadas."

Como descrever este estupor, este adensar do silêncio frio que enche a casa? Leio e não acredito. Envio alguns sms's e um email: "Não é justo! Nunca é justo mas... 34 anos, porra!?" Mal a conhecia - de raspão num jantar de aniversário de um amigo comum, o suficiente para simpatizar com ela; o gosto de a ler, no jornal e neste blogue e também neste, onde assinava com um nome carregado de música e aventura. Pouco mais mas que parece tanto, agora.

Leio, em silêncio, as palavras dos outros onde me faltam as minhas. Um café amargo, o choque e, sobretudo, a respiração dorida numa das casas que habitava.

E fico em silêncio, a pensar que importa não deixar de decifrar vidas, seguindo (também) o exemplo de Maria José Margarido.

Mário Cesariny de Vasconcelos

"Gostava de ter daquelas mortes boas, em que uma pessoa se deita para dormir e nunca mais acorda ..."

19.11.06

Pequenos (grandes) Prazeres


Ler. Como sempre acontece quando um livro me agarra, faço render as últimas dezenas de páginas, saboreando as palavras e os desenlaces da intriga. Quando, esta tarde, li a derradeira linha, na página 400, escolhi a palavra "arrebatador" para catalogar a obra no índice dos meus prazeres. Absolutamente recomendável.

18.11.06

apáginastantas

“O destino costuma estar ao virar da esquina. Como se fosse um gatuno, uma rameira ou um vendedor de lotaria: as suas três encarnações mais batidas. Mas o que não faz é visitas ao domicílio. É preciso ir atrás dele.”

Uma pérola filosófica da deliciosa personagem Fermín, em A Sombra do Vento, de Carlos Ruiz Zafón, Dom Quixote, 2004

16.11.06

Escolaridade Obrigatória


O colega de Educação Tecnológica fala-me do projecto O Chapim Vai à Escola, uma parceria com a Câmara Municipal que envolve uma turma de 8º ano. A Câmara fornece os materiais (madeira, cola, pregos) e a rapaziada constrói os ninhos para que os chapins-azuis, o tipo mais comum no concelho, se possam abrigar e descansar do trabalho de comer as nutritivas lagartas dos pinheiros, contribuindo para prevenir eventuais pragas. Explica-me, então, o colega que os ninhos têm um pormenor importante: o furo de entrada e saída deve obedecer a uma medida exacta, para que só os chapins-azuis possam utilizar as casotas colocadas no terreno. "Se não, os galifões podiam entrar!", diz-me ele, chocado com a ideia. Os galifões são as outras espécies de pássaros. Os pardais, por exemplo... Entrar sem licença nas casas dos outros? Mal educados! Também precisam de ir à escola, pelos vistos!


Canal Odisseia

Abro as portadas da janela da sala para um céu azul, com um novelo branco sobre a direita, e uns fiapos ao longe. No telhado em frente, uma corpulenta gaivota procura equilibrar-se nas anfíbias patas amarelas, escorregando pelas telhas húmidas, esverdeadas pelas águas deste outono. Puxa o pescoço para trás e desfere mais uma bicada no corpo inerte, quase no beiral. Mais acima, sobre as antenas e a chaminé, alguns pombos observam, em silêncio. A gaivota luta contra o plano inclinado, enterrando outra vez o bico no cadáver. Os pombos trocam de posição, entre a chaminé e as antenas. Chega mais uma gaivota, pousando no murete da empena, primeiro balcão sobre a cena. A primeira levanta a cabeça do festim e, batendo as asas, eleva o corpo de forma ameaçadora, afugentando a rival. Os pombos desaparecem. O corpo penado, com um rasgão ensanguentado, escorregou para junto do algeroz e a gaivota consegue arrancar-lhe um pedaço de carne, que debica agora mais ao lado. Uma sombra larga atravessa o céu azul. Dezenas de pombos aterram no topo de outro prédio, dois números de polícia abaixo. Deslizam mais três gaivotas. Observam, com movimentos contidos, e largam numa assuada que enche a rua, em ricochetes pelas paredes.

15.11.06

Natureza morta

Na fruteira, o abacaxi vai amadurecendo. Do verde, com farripas acastanhadas, passa ao laranja suave. Há um perfume luminoso no ar. Duas ou três laranjas não resistem à temperatura da casa (vindas da frescura artificial dos armazéns regulados a ar condicionado?) e transformam-se em bolas de bolor poeirento. As maçãs enrugam a pele outrora macia e avermelhada. A matéria fibrosa amarelece por debaixo - há uma doçura perigosa no seu sabor, próximo já da decomposição. As peras apresentam profundas manchas escuras que é preciso cortar com uma faca bem afiada. O que se pode aproveitar ainda, porém, quase não tem préstimo: aparece já debilitado por uma excessiva moleza. Algumas vão directamente para o saco plástico do lixo. Sobre tudo isto vagueiam pequenos mosquitos castanhos que se deixam esmagar com um "clap" rápido das duas mãos. Por fim, há o coração deste organismo hesitante entre vida e morte: a romã. Inchada de madura, abriu um rasgão na casca rugosa e dura. Dessa ferida púrpura, a lembrar outras fendas, escorre um suco que ensanguenta os frutos vizinhos, o próprio vidro da fruteira. Limpo esse sangue com papel branco de cozinha. E assino o quadro.

Ariadne

Do rio chegam-me uivos de barcos cegos. Um carro pára, no meio da rua. Dois vultos descarregam caixas e sacos para uma porta. Quanto tempo demora uma mudança? O que é vital mudar de lugar com o corpo? Estou cansado. Volto a escutar Venus in Furs. Abro lentamente uma garrafa e provo um cálice. O que esperar ainda desta noite, escrevo, não propriamente como interrogação mas como desejo. O vinho parece chocolate com amoras... arrefece? Escreves: frio. Respondo: lá fora. Passaremos das metáforas, algum dia? – digito agora, como pura busca de um sentido. Mesmo tacteando pontos cardeais (pequenos arranhões, cicatrizes), não terá sido tudo a metáfora de um labirinto?

10.11.06

Do Retrato em Poesia Portuguesa 3

SEM TÍTULO

Baixa, de olhos ruins, amarelenta,...

(Autor anónimo)

Do Retrato em Poesia Portuguesa 2

AUTO-RETRATO

O'Neill (Alexandre), moreno português,
cabelo asa de corvo; da angústia da cara,
nariguete que sobrepuja de través
a ferida desdenhosa e não cicatrizada.
Se a visagem de tal sujeito é que vês
(omita-se o olho triste e a testa iluminada)
o retrato moral também tem os seus quês
(aqui, uma pequena frase censurada...)
No amor? No amor crê (ou não fosse ele O'Neill!)
e tem a veleidade de o saber fazer
(pois o amor não há feito) das maneiras mil
que são a semovente estátua do prazer.
Mas sofre de ternura, bebe de mais e ri-se
do que neste soneto sobre si mesmo disse...

(Alexandre O'Neill)

Do Retrato em Poesia Portuguesa 1

RETRATO PRÓPRIO

Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão de altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno:

Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura;
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno:

Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades:

Eis Bocage, em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia em que se achou mais pachorrento.

(Bocage)

Jesus loves Amerika

8.11.06

Dusk

Disjuntor 2

Era, mesmo, apenas gripe. Ele ficou vacinado.

7.11.06

Dust

Disjuntor

Ela disse: gripe. Ele entendeu: carinho.

grs/m2

Fica mais um pouco, sussurrou-lhe ela.
Ele ficou.
Pousou os dedos sobre a pele fina, de leve grão.
Aspirou-lhe o perfume, vegetal.
Ela agitou-se, pareceu-lhe.

Ergueu a caneta e desenhou uma palavra:
Era

De repente, a folha encheu-se de mato.
Uma floresta densa, recheada de sons animalescos, pássaros que pareciam suspiros ou suspiros mascarados de pássaros.
Um calor atravessou-lhe as têmporas.

Mergulhou mais fundo, sem largar a caneta, os lábios entreabertos, soletrando:
Uma

A folha tinha-se multiplicado por mil, como os cabelos de uma ninfa nórdica, de um loiro quase branco, libertando um odor húmido que sentia subir-lhe pelos dedos, pelas mãos, pelos braços, enlaçando-lhe o tronco, escorrendo-lhe para o ventre.

Tinha a garganta seca e os olhos doridos. Na mão que segurava ainda a caneta, as veias pareciam explodir, como se fossem as veias da própria caneta:
Vez

Num estalo seco, a folha dobrou-se sobre si própria, como uma praticante de artes marciais, e desferiu-lhe um golpe rápido no pulso, com a margem afiada.

A caneta - em slow motion.

6.11.06

Fantasia

Sigur Rós - Glósóli


E se pudéssemos regressar à infância, o que seria de nós?

2.11.06

X

Piso a orla do circo de feras, os braços cruzados, em x, Janis não há-de tardar, lembrando-nos que a madrugada não dissolveu verdadeiramente as fronteiras do tempo. Faço uma tangente ao desejo quando, num estranho coro, todos os semáforos da cidade disparam o vermelho.

30.10.06

As pequenas luzes

Da janela do quarto de F., olhando à esquerda, posso ver as duas pequenas luzes que os vizinhos do prédio do lado deixam acesas durante a noite, todas as noites, na sua varanda do segundo andar. Eu desço o estore para F. se deitar e dormir e vejo-as, todas as noites, pequenas luzes tremeluzentes a oscilar na noite. De manhã, F. acorda e eu subo o estore: lá estão elas, protegidas, no interior das duas conchas transparentes que as defendem dos ventos e das chuvas. Todas as noites, toda a noite, ontem, hoje, agora. Amanhã.

Pequenos Prazeres

Outono. O belo chuvisco das folhas lembra-nos que a seiva há-de trazer rebentos e outros deslumbramentos. Sento-me aqui, por instantes, na companhia das árvores e da flauta do vento, decifrando ensinamentos antigos.

29.10.06

O "Blogue"

O "Blogue" já teve melhores dias, não ?
Há um certo "desentusiasmo" ...
Eu pelo menos não ando nada entusiasmado com isto ...

24.10.06

Dia de Psi

Tindersticks - Can We Start Again

Do You Remember?

Tindersticks-Travelling Light



Dia de psi. O céu cinza amarelado, como os dedos de um velho fumador. Agora, mais escuro. Um desejo de procurar o sol, reconquistar o sol.

22.10.06

Antes a Morte

“Dá vontade de rir: uma cidade em que até o coveiro se mata.” Rui Cardoso Martins leva-nos para dentro da estatística, que dita que é no imenso sul que há mais gente de cordas e venenos em riste. Escrito com uma granada no bolso, E Se Eu Gostasse Muito De Morrer (edição Dom Quixote) lê-se num abrir e fechar de olhos - a expressão ganha aqui outro valor, claro. A prosa é enxuta, directa à carótida, numa dança de vozes e alcunhas de infância, piscadelas de olho à actualidade, um punho atirado às misérias da História do império colonial, com as duas chaminés da fábrica da cortiça em fundo. Por uma sai fumo negro, pela outra, branco.

Uns dias depois do livro, sem premeditação, um filme, no DocLisboa: Exit – The Right to Die levou dois anos a fazer, explicará depois, numa conversa com o público, o suiço Fernand Melgar. Seguimos os passos dos voluntários de uma associação que ajuda pessoas com doenças graves, que querem pôr um ponto final no sofrimento. Trata-se de um filme sobre a vida, previne antes da projecção, o realizador. Quando as luzes se acendem, no final, há um denso silêncio que se arrasta e é quase em silêncio que a sala se esvazia.

Perto do fim, acompanhamos os preparativos para a morte de uma mulher, realizados pelo presidente da Exit. Dois líquidos, misturados num copo, que é preciso beber até à última gota. “Se beber até à última gota, depois não poderei fazer mais nada”, explica o voluntário, médico de profissão, depois de ter perguntado, mais algumas vezes, se ela está mesmo determinada. Ajuda a mulher a erguer-se na cama e estende-lhe o copo. Ela despeja-o, sem hesitações. A câmara filma pelas costas da mulher, apanhando o olhar do voluntário e as lágrimas de uma amiga. Na parede em frente há um espelho. A seguir, a mulher vai deitar-se e adormecer. O voluntário sugeriu-lhe que pensasse numa recordação agradável, por exemplo nos pais, de quem tanto gostava.

No debate que se realizou depois da projecção, um espectador quis saber se a mulher dessa cena final se estava a ver ao espelho. O realizador respondeu que não sabia. O que ele sabia, antes de começar a filmar, é que queria filmar pouco “para não estar a escolher, na mesa de montagem, quais os casos que aproveitava e quais os que deixava de fora”. O que ele sabia, antes de começar a filmar, é que não queria registar o momento da morte de ninguém. Acabou por fazê-lo, uma única vez, aquela que vimos. Explica que sentiu necessidade. Um espectador disse entender, confessou que sentiu o alívio.

21.10.06

14.10.06

13.10.06

.

11.10.06

Monóculo / Monólogo


Por momentos, consigo ver a lua, envolta num lençol de nuvens, através da vidraça do topo da janela. Depois, apaga a luz. Sigo-lhe o exemplo.

10.10.06

Lentes, Modos de Usar

A brincar, os teus filhos partem-te outra vez os óculos. A tua mulher sugere-te que experimentes lentes de contacto. Experimentas, e regressas a casa com as lentes colocadas sobre a água dos olhos. A tua mulher olha-te e diz-te que não te reconhece totalmente. Como se tu já não fosses tu de uma certa maneira. Como se fosses uma segunda pessoa a escrever na segunda pessoa. Tu. Eu?

O Mundo Em Expansão

Trocas os óculos por lentes de contacto e as pessoas parecem não reparar nisso. Mas tu notas que as coisas à tua frente ficam ligeiramente maiores. Por exemplo, os caracteres no écran. Ou as botas nos pés.

As Pessoas Conhecidas Que Encontramos Num Hospital

Os tios dos rapazes de quem fomos amigos. E que nos falam dos sobrinhos, ou das filhas dos sobrinhos, sem saberem que nos incompatibilizámos definitivamente com eles, por motivos que não conseguimos já determinar. Ou aquelas senhoras, agora muito velhinhas, que tomaram conta de nós no princípio de tudo. Enquanto os pais trabalhavam nas Siderurgias e as mães nas fábricas corticeiras, elas deram-nos o leitinho no biberão, mudaram-nos as fraldas, adormeceram-nos ao colo... Mas não nos reconhecem quando entramos, ao fim da tarde, nos quartos partilhados com outras velhinhas que não reconhecem os outros como nós que entram nos quartos para as visitar. Ninguém sabe muito bem o que dizer. E depois a visita acaba.

8.10.06

Comunidade de Leitores 3

"Donde é que vens, galdéria?"
"Da rua, Senhora."
"Às onze da noite, na rua?"
"A calçada não se derrete com o escuro."
"Ordinária. Cabra filha de cabra."
"E de cabrão, senhora."

Nuno Bragança, A noite e o riso (1969).

XIII: Teses Para Uma Teoria da Conspiração

Não são especulações, mas factos. A série vai já no 17º álbum, embora em Portugal só tenham sido publicados os primeiros nove, pela Meribérica/Liber. Comprei-os todos em duas vezes, no sítio do costume, a preços de saldo, resultado da extinção da editora (desconheço se outra chancela prosseguirá a edição dos restantes volumes; se tal não acontecer, é uma pena). Li, por estes dias, os primeiros cinco: O dia do sol negro; Para onde vai o índio...; Todas as lágrimas do inferno; SPADS; Alerta vermelho. Os autores não me são totalmente desconhecidos: William Vance, por exemplo, desenhou para Jean Giraud algumas histórias do Marshal Blueberry; Jean Van Hamme é, por sua vez, co-autor de Largo Winch e do excelente Western, desenhado por Rosinski. Créditos excelentes, confirmados nestas aventuras de homens e mulheres em fuga, políticos enlouquecidos pelo poder, manipulações, sonhos e armadilhas. Tão reais como a realidade.


Um homem dá à costa com um ferimento grave na cabeça. Recupera do ferimento mas perde por completo a memória de quem é, de onde vem, para onde vai. Descobre que há gente muito poderosa que o quer prender ou matar. Dizem-lhe, mostrando-lhe imagens de um filme como prova, que assassinou o 43º Presidente dos Estados Unidos da América, baleado "em plena rua durante uma visita oficial ao sul do país"... Em Dallas? Como muitas obras de ficção, esta BD parte de alguns factos verídicos para poder desenvolver as linhas mestras da sua enfabulação. Os elementos que os autores utilizam remetem, de imediato, o leitor para o caso Kennedy e as suas proliferantes teses de conspiração: assassínio do presidente; luta eleitoral entre o irmão deste, liberal e defensor de políticas progressistas e sociais, e o seu adversário, o vice-presidente, claramente manipulado por sectores militares e políticos de extrema-direita ("Temos de proteger a nossa economia ameaçada. Temos de reforçar o nosso potencial militar para assegurar a desfesa da nossa supremacia. A hora, meus amigos, não é de escolhas tímidas: sob pena de sermos esmagados, é preciso dominar!": estávamos em... 1987; lembram-se de Reagan?); atentado falhado contra o irmão do presidente assassinado; golpe de estado a partir do interior da Casa Branca para instauração de um regime ditatorial disfarçado de democracia ("O atentado que acaba de ter lugar só pôde realizar-se graças à cumplicidade das mais altas individualidades, General. Na qualidade de Ministro da Defesa e de amigo pessoal do Presidente (...), parece-me indispensável decretar a autoridade das forças armadas em todo o país, até ao total esclarecimento desta terrível conspiração. Alguém tem objecções a apresentar?", pergunta a sinistra personagem de Calvin Wax; Rumsfeld avant la lettre?!). O álbum onde se podem ler estas palavras é o último que li, Alerta vermelho, no fim do qual os conspiradores são desmascarados e vencidos. Pelo menos é o que acontece normalmente na ficção. E na realidade? Bom, isso já é outra história...

Tears Transforming

Banda sonora para um domingo. Será que todos os textos têm música, entrelinhas?

Tord Gustavsen Trio, The Ground, ECM, 2004

As Mãos do Pai (uma imagem e mil palavras)

para LP

“ – Você está a ver, meu filho, tanta beleza! Quero nascer mais vezes.” Gostava de escrever assim. Uma fotografia, por exemplo. Uma crónica num jornal. José Eduardo Agualusa sabe que é no detalhe que está a grande expressão da humanidade. Hoje escreve na Pública novas Fronteiras Perdidas, no olhar de uma fotografia intensa de Yannis Kontos, que podemos ver no CCB, até ao próximo dia 22.


“Ao meu pai roubaram-lhe as mãos. Nunca me disse como. Disse-me: um dia fui dormir, filho, havia a guerra. Quando acordei alguém me tinha levado as mãos”. O cronista-escritor junta palavras na palma do texto e leva-nos em viagem pelo imaginário de uma imagem, pela mão de um filho. “Ando pelas ruas e toda a gente tem as mãos do meu pai. Um dia, não duvido, vou encontrar alguém com umas belas mãos, de dedos longos, a palma honesta, meio amarelada, muito cheia de futuro, mas sem a linha da vida.”

Escrita a Dias

C. diz que tem uma colega (uma amiga?) que gosta de ler alguns textos deste blogue. A informação surge (e perde-se?) entre o cação, a carne com brócolos e dois tragos de Duas Quintas – que magnífico repasto! – , misturada com notas cinéfilas e o aperitivo de uma polémica sobre os atentados que não nos largam a retina (olha, mais um golo!). Porque gostamos do que lemos? Porque escrevemos, em letra miúda – corpo 12, no dealbar da puberdade –, o que escrevemos?... notas pessoais, impressões de viagens, estados de alma e letras de canções... Acaso notará a leitora algumas vírgulas fora do lugar e uma certa pose no centro desta e daquela frase? Conspiramos um novo lugar secreto, ao abrigo de olhares indiscretos mas, na verdade, sabemos que gostamos de ser lidos e observados no desenho que esboçamos dos dias andados. Porque queremos partilhar algo, talvez nem sempre muito nítido. Uma mnemónica acrobática, talvez.

Almoço Volante

Na mesa do lado está um homem, quarentas e muitos, a almoçar com os pais. Discutem a ementa, a mãe escolhe espada grelhado, pai e filho optam por dividir um cozido. No meio da sala, uma família paga a conta e encaminha-se para um automóvel estacionado em segunda fila, mesmo frente à porta do restaurante. O homem da mesa do lado levanta-se e sai. Um minuto depois, um novo automóvel estaciona em frente da porta, em segunda fila. O condutor entra no restaurante e senta-se na mesa do lado, servindo-se de mais enchidos e batata.

7.10.06

Sónia

O que é o transe? Uma angústia, uma intermitência, uma suspensão, um pesadelo com as pálpebras puxadas para cima por dedos rapaces. O gelo.

O gelo estala. O corpo é atirado para dentro de uma banheira cheia de água. O frio. Umas algemas numa estrada desconhecida. Podes fugir quando sentires que vai ser possível. Talvez um louco te abra a porta. Álcool.

Uma bola de espelhos rodopia reflexos numa parede. Agora tens batom. Agora está esborratado. Esbofeteada. Água. Sede. Os lábios gretados. Suor. Podes fugir mas não agora. Esperma. Como se a bola de espelhos rodopiasse dentro da tua cabeça enquanto os homens procuram arrancar-te as pétalas, com (indiferente) delicadeza.

Que língua é esta? Como te chamas? O Mal não tem tradução? Diz. Água? Dinheiro. Escapa, corre!

Vários homens e um cão a arfar. Um castigo. Para aprenderes a não fugir porque não és dona do teu corpo nem do teu destino. Um contentor. Ainda te lembras do teu nome? Sim. Talvez consigas escapar mas se calhar vais ter, para sempre, uma bola de espelhos a rodopiar dentro da tua cabeça.

“Tanto eu como a Ana Moreira sabiámos que estávamos a falar de uma coisa maior do que nós próprias”

Teresa Villaverde, realizadora de “Transe, Expresso, 30 de Setembro 2006

6.10.06

Os gatos estão tristes ... e não só ... *














Hoje morreu o Gris.
O gato mais velho da R. e do P.
Era um gatão.
Foi de certeza para o Céu dos gatos.
Fiquei triste com a notícia ... recebia-a há poucos minutos ...
Morreu de manhã de paragem cardíaca ...
Tinha 13 anos ... nasceu a 25 de Abril de 1993 ...


* Este post foi actualizado hoje, dia 14 de Outubro de 2006 a pedido de R.R. que me pediu que colocasse antes uma foto do Gris.

3.10.06

Nova Terminologia Amorosa

(Duas adolescentes melancólicas, 13 ou 14 anos, no pátio da escola:)
- Tenho tido bué de problemas com ele... bué de chatices...
- Quanto melhor tratamos um damo, mais ele nos despreza!
(Novas palavras, leis ancestrais.)

2.10.06

Metamorfose (versão com penas)


Pousou as chaves, tirou o casaco e olhou para as janelas, onde a cidade anoitescorria. Imaginou-se a viver rodeado de água por todos os lados. Descalçou os sapatos e foi aquecer a sopa para o jantar, soltando, de quando em vez, um discreto quá.

1.10.06

Nova Terminologia Linguística

Tu devolveste-me as chaves de casa, eu deixei cair as chaves do meu carro no Teu carro. Mas nem eram as chaves da minha casa, nem Tu e Teu apontam para o mesmo referente. Na gramática, chama-se a isto deixis (do grego apontar). Na vida, são vocês.

A Barriga de um Arquitecto

Sentado num banco almofadado da FNAC, ele olhava com atenção as fotografias de um álbum cujo título era Eros. Na capa via-se um torso feminino, nu e muito branco, e uma mão masculina, morena, a cobrir a zona púbica desse corpo branco. Quando o telemóvel tocou, ele respondeu: "Estou na FNAC a ver um livro de arquitectura. Precisam mesmo de mim aí?..."

Os Manequins

Elas entram nas lojas e mexem e desdobram as roupas; experimentam; despem e vestem; olham-se nos espelhos dos cubículos dos provadores. Eles ficam cá fora, debruçados no varandim do primeiro piso do Centro Comercial. E, enquanto esperam, fumam. Olham para a domingueira corrente humama lá em baixo. Depois levantam os olhos e vêem os manequins das montras que parecem esperar que alguém se lembre de os transformar em seres de alma, carne e osso, capazes de viver, amar e sofrer. No fim, elas saem das lojas e trazem mais um saco a juntar a outros. Avançam, lado a lado, pelos corredores, deixando para trás os manequins e os seus próprios reflexos entrevistos nos grandes vidros das montras.

Digestivo

Gosto deste restaurante do bairro, muito familiar. Ontem almoçei dourada com legumes. Hoje fui no cozido, apostando tudo nas couves, evitando repetir enchidos, resistindo à tentação de esvaziar o meio jarro do bom tinto da casa. É um daqueles sítios onde me sinto bem, quase em casa. Quando chego, os empregados saúdam-me, estendem a mão. “Como vai? Está sózinho?”. Que sim, pode ser na mesa junto à janela, inexplicavelmente tapada por um reposteiro. Espaço reservado, acolhedor. Telemóvel em silêncio, as gordas do jornal e logo a seguir a travessa, bem aviada. Olho em volta e descubro rostos conhecidos: famílias e amigos no ritual de almoçar fora, ao domingo. Saboreio. Quarenta minutos depois, paga a conta, recolho os pertences e dirigo-me para a porta. Um dos empregados despede-se e pergunta, com ar preocupado: “A esposa, está bem?”. Ainda com a boca-café respondo, surpreendendo-me, quase sem hesitar: “Está bem, tem andado por fora”. Familiar não quer dizer íntimo, não é?