15.11.06

Natureza morta

Na fruteira, o abacaxi vai amadurecendo. Do verde, com farripas acastanhadas, passa ao laranja suave. Há um perfume luminoso no ar. Duas ou três laranjas não resistem à temperatura da casa (vindas da frescura artificial dos armazéns regulados a ar condicionado?) e transformam-se em bolas de bolor poeirento. As maçãs enrugam a pele outrora macia e avermelhada. A matéria fibrosa amarelece por debaixo - há uma doçura perigosa no seu sabor, próximo já da decomposição. As peras apresentam profundas manchas escuras que é preciso cortar com uma faca bem afiada. O que se pode aproveitar ainda, porém, quase não tem préstimo: aparece já debilitado por uma excessiva moleza. Algumas vão directamente para o saco plástico do lixo. Sobre tudo isto vagueiam pequenos mosquitos castanhos que se deixam esmagar com um "clap" rápido das duas mãos. Por fim, há o coração deste organismo hesitante entre vida e morte: a romã. Inchada de madura, abriu um rasgão na casca rugosa e dura. Dessa ferida púrpura, a lembrar outras fendas, escorre um suco que ensanguenta os frutos vizinhos, o próprio vidro da fruteira. Limpo esse sangue com papel branco de cozinha. E assino o quadro.

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