22.10.06

Antes a Morte

“Dá vontade de rir: uma cidade em que até o coveiro se mata.” Rui Cardoso Martins leva-nos para dentro da estatística, que dita que é no imenso sul que há mais gente de cordas e venenos em riste. Escrito com uma granada no bolso, E Se Eu Gostasse Muito De Morrer (edição Dom Quixote) lê-se num abrir e fechar de olhos - a expressão ganha aqui outro valor, claro. A prosa é enxuta, directa à carótida, numa dança de vozes e alcunhas de infância, piscadelas de olho à actualidade, um punho atirado às misérias da História do império colonial, com as duas chaminés da fábrica da cortiça em fundo. Por uma sai fumo negro, pela outra, branco.

Uns dias depois do livro, sem premeditação, um filme, no DocLisboa: Exit – The Right to Die levou dois anos a fazer, explicará depois, numa conversa com o público, o suiço Fernand Melgar. Seguimos os passos dos voluntários de uma associação que ajuda pessoas com doenças graves, que querem pôr um ponto final no sofrimento. Trata-se de um filme sobre a vida, previne antes da projecção, o realizador. Quando as luzes se acendem, no final, há um denso silêncio que se arrasta e é quase em silêncio que a sala se esvazia.

Perto do fim, acompanhamos os preparativos para a morte de uma mulher, realizados pelo presidente da Exit. Dois líquidos, misturados num copo, que é preciso beber até à última gota. “Se beber até à última gota, depois não poderei fazer mais nada”, explica o voluntário, médico de profissão, depois de ter perguntado, mais algumas vezes, se ela está mesmo determinada. Ajuda a mulher a erguer-se na cama e estende-lhe o copo. Ela despeja-o, sem hesitações. A câmara filma pelas costas da mulher, apanhando o olhar do voluntário e as lágrimas de uma amiga. Na parede em frente há um espelho. A seguir, a mulher vai deitar-se e adormecer. O voluntário sugeriu-lhe que pensasse numa recordação agradável, por exemplo nos pais, de quem tanto gostava.

No debate que se realizou depois da projecção, um espectador quis saber se a mulher dessa cena final se estava a ver ao espelho. O realizador respondeu que não sabia. O que ele sabia, antes de começar a filmar, é que queria filmar pouco “para não estar a escolher, na mesa de montagem, quais os casos que aproveitava e quais os que deixava de fora”. O que ele sabia, antes de começar a filmar, é que não queria registar o momento da morte de ninguém. Acabou por fazê-lo, uma única vez, aquela que vimos. Explica que sentiu necessidade. Um espectador disse entender, confessou que sentiu o alívio.

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