24.12.06

Com(tra) a Letra de Fernando Assis Pacheco


Certos poetas escrevem e fica escrito. Há uns tempos, no "Actual" do Expresso Joaquim Manuel Magalhães escrevia sobre isto e dava o exemplo de Jorge de Sena, criador alérgico a revisões da obra produzida. Outros colocam-se no pólo oposto: rescrevem, corrigem, apagam, acrescentam, emendam em sucessivas edições o escrito ao longo de uma vida. Carlos de Oliveira fica como exemplo maior deste tipo de autores, tanto na prosa como na poesia, com a sua atitude de permanente recomposição do que foi escrevendo. Dos vivos há muitos outros exemplos, um dos melhores (para além do próprio Joaquim Manuel Magalhães) será Herberto Helder, cuja Poesia Toda tem sido sucessivamente rescrita e reconfigurada em "poema contínuo", organismo vivo e voraz que se consome e é o alimento de si mesmo em permanente invenção.
Todo este alongado prólogo vem a propósito de um poeta de que falámos ontem à noite e de que gosto muito, ainda que não o tenha relido nos últimos tempos: Fernando Assis Pacheco. E, particularmente, de um poema seu que me comove de forma profunda e inequívoca. E que o poeta, se me for permitida a ousadia, não foi feliz... mudando-o. Trata-se de "Com a Tua Letra", um texto de Cuidar dos Vivos, o primeiro livro de Assis Pacheco, editado em Coimbra, em 1963. Ei-lo:

"Fala-se de amor para falar de muitas
coisas que entretanto nos sucedem.
Para falar do tempo, para falar do mundo
usamos o vocabulário preciso
que nos dá o amor.

Eu amo-te. Quer dizer: eu conheço melhor
as estradas que servem o meu território.
Quer dizer: eu estou mais acordado,
não me enredo nas silvas, não me enredo,
não me prendo nos cardos, não me prendo.
Quer também dizer: amar-te-ei
cada dia mais, estarei cada dia
mais acordado. Porque este amor não pára.

E para falar da morte; da enorme
definitiva irremediável morte,
do carro tombado na valeta
sacudindo uma última vez (fragilidade)
as rodas acendedoras de caminhos
- eu lembraria que o amor nos dá
uma forma difícil de coragem,
uma difícil, inteira possessão
de nós próprios, quando aveludada
a morte surge e nos reclama.

Porque eu amo-te, quer dizer, eu estou atento
às coisas regulares e irregulares do mundo.
Ou também: eu envio o amor
sob a forma de muitos olhos e ouvidos
a explorar, a conhecer o mundo.

Porque eu amo-te, isto é, eu dou cabo
da escuridão do mundo.
Porque tudo se escreve com a tua letra."

Ora este poema "insuportavelmente belo" foi republicado em A Musa Irregular, volume editado pela saudosa Hiena Editora no ano de 1991. Em "Nota" final, Assis Pacheco explica que Cuidar dos Vivos foi expurgado "dos poemas mais caducos", tendo outros (como no caso de "Com a Tua Letra") sido reduzidos "em extensão" ou sofrido "algumas correcções vocabulares". Tudo em nome de "uma escrita modesta", marca ética e estética de um autor enorme que recusou, sem dúvida, a ênfase e o sentimentalismo mas que, no caso em apreço, pecou por excesso de rigor, pois nem sempre "menos é mais". Vejam o que sobrou do poema de 63 - apenas isto:
"Porque eu amo-te, quer dizer, estou atento
às coisas regulares e irregulares do mundo.
Ou também: eu envio o amor
sob a forma de muitos olhos e ouvidos
a explorar, a conhecer o mundo.
Porque eu amo-te, isto é, dou cabo
da escuridão do mundo.
Porque tudo se escreve com a tua letra."
Das cinco estrofes da versão de 63 resistiram apenas duas, as últimas, redução que elimina a espécie de introdução à matéria do poema (falar do amor, falar de muitas coisas através dele) que é a primeira estrofe dessa versão e o seu desenvolvimento/expansão (as duas estrofes seguintes, as mais longas, respectivamente uma oitava e uma décima), onde se trata do conhecimento das coisas, do "território" e das suas "estradas", bem como da morte ("definitiva irremediável morte"). Em 91, o poema fica reduzido a um quarto (os 31 versos iniciais passaram a... 8), perdem-se pelo caminho imagens assombrosas de beleza e sugestão como aquela das "rodas acendedoras de caminhos" ou a "forma difícil de coragem" que o amor nos proporciona. Infelizmente. Infelizmente, também, não tenho eu agora acesso ao original de Cuidar dos Vivos, de 63 e, por isso, não posso saber se assis Pacheco noutros casos foi mais certeiro e justo na sua tarefa de se ler a si próprio. Leio "Com a Tua a Letra" na Antologia da Poesia Portuguesa 1940 - 1977, de Maria Alberta Menéres e E.M. de Melo e Castro, Moraes, 1979, 2º volume, pp. 305/306. Um dos melhores poemas de amor que conheço, um dos mais altos momentos poéticos deste 2º volume e desta antologia. Um poema que já não existe como eu desejaria na obra poética do seu autor. Mas um poema que existe para mim.

1 comentário:

j disse...

É um belissimo poema! Gosto particularmente deste pedaço, que sobreviveu à jardinagem do poeta:
"Porque eu amo-te, isto é, dou cabo
da escuridão do mundo."...