17.12.06

A alma (americana) & a lama



Agora que vos "apresentei" Deadwood, deixem-me falar sobre alguns (apenas alguns!) dos aspectos, para mim, mais fascinantes da série.

Realismo.
Em primeiro lugar, o efeito de realismo que vitaliza as imagens, visível, desde logo, no ar de coisa em construção do Campo. É, de resto, o próprio Campo que aparece, nesta medida, como a grande personagem da série, um organismo vivo que vai crescendo, funcionando os indivíduos como elementos de um todo que é mais do que a soma das suas partes. As difíceis condições de sobrevivência, a lama, a sujidade, a brutalidade são óbvias indicações do que se prentende mostrar e dar a pensar: que a América foi (e é!) tanto a terra dos sonhos grandiosos, como a dos maiores pesadelos. Vejo neste ponto uma conexão possível entre Deadwood e o fabuloso épico scorsesiano Gangues de Nova Iorque, pois em ambos a dimensão social e colectiva enquadra os indivíduos sem os esmagar. Mas, também, sem os explicar completamente.

Heróis.
Assim, em segundo lugar, torna-se anacrónico falarmos de heróis: há muito que eles desapareceram das imagens dos westerns de Hollywood, primeiro no cinema, agora na televisão. Dizer que já não há heróis é um lugar-comum, mas ele não se tinha manifestado ainda com tamanha força numa série televisiva: por onde se terão perdido os heróis clean de Bonanza? (recuso-me a falar dessa coisa absurda, chamada Jovens Cowboys, nem sei se conhecem!...) Em Deadwood não há lugar para eles: até as "lendas" do Oeste, como "Calamity" Jane ou Wild Bill Hickock, com quem nos cruzamos logo nos primeiros episódios, estão longe, demasiado longe de qualquer ideia de heroísmo. Trata-se, somente, de sobreviver num meio hostil. E de enriquecer o mais depressa possível. O que exige coragem, determinação e sorte. Mas, também, cinismo, manha, violência brutal. Darwin anda por aqui: o direito do mais forte à sobrevivência. Mas sobre isto muito, quase tudo, fica por dizer.
Linguagem.
A propósito do dizer, este é outro aspecto que aumenta o fascínio da série. E outro dos modos de construir o seu efeito de realismo. A maneira como a linguagem é tratada, conhecendo o espectador alguma coisa de inglês, contribui decisivamente para a construção plena das personagens: o colorido dos discursos, monólogos e diálogos de Al Swearegen, Seth Bullock, do Reverendo, do Médico, de Alma Garret ou de E.B., etc., cheios de calão ordinário (Swearegen) ou dos maneirismos aristocráticos de Alma, são a música ruidosa e encantatória que dá sabor às imagens, em despiques ora pícaros, ora épicos que, infelizmente, só em certos momentos a tradução consegue captar e transmitir. Mas, justiça seja feita ao tradutor, como traduzir as falas de Seaweregen com cem palavras em que cinquenta por cento das mesmas é constituída pela palavra "fucking"? Só vendo! E ouvindo!
Personagens (1).
Há Al Swearegen, a alma mater do Campo, e Seth Bullock, o homem que procura manter a verticalidade moral num meio insano. Do equilíbrio conflituoso dos dois, feito de mútua fascinação e repúdio, emerge parte fundamental do equilíbrio lógico e narrativo da intriga. Al é o dono do salloon, o homem sem escrúpulos, controlador do álcool e da prostituição, duas das áreas económicas mais rentáveis do Campo, capaz de mandar eliminar quem se atravessar no seu caminho (mas, por outro lado, comovedor na sua humana fragilidade, violenta e desamparada). Seth é aquele que busca, intransigente, um equilíbrio intímo e público impossível, pois os seus princípios morais, puros e duros, não se coadunam com um mundo dominado pelas paixões (de diversa ordem) a que ele também não consegue escapar. O trabalho interpretativo de Timothy Oliphant, oposto ao de Ian McShane, é então o de uma constante interiorização, de recalcamento de impulsos, de negação da violência que, todos sabemos, incluíndo ele próprio, germina no seu interior: notem o modo como a boca, o olhar, o rosto se torcem e contorcem em certos momentos. McShane, pelo contrário, deita tudo, literalmente, cá para fora: saliva, sangue, esperma, insultos, gritos, raiva, ódio. Só a urina lhe pregará, a certa altura, uma partida quase mortal, justamente por se recusar a sair do seu corpo!
Personagens (2).
Se estas duas são personagens-chave da série, outras há absolutamente inesquecíveis: a esplendorosa Alma Garret; o amigo judeu de Seth; o inenarrável dono do Hotel; o jornalista especioso; o médico marcado por um passado atormentador e desconhecido; o reverendo que cairá na loucra e na doença; o rival de Swearegen; o chinês que alimenta os porcos com cadáveres humanos e outros; vilões de toda a espécie, jogadores de póquer, prostitutas, etc., uma galeria de notáveis que inclui verdadeiras lendas, como os já referidos Wild Bill Hickock e "Calamity" Jane. Magnífica paisagem humana.
Política (para terminar).
Deadwood é um Campo na zona de fronteira: ilegal, sítio ainda fora do território administrativo do Estado Americano. Microcosmos do pioneirismo de ocupação do Oeste, o Campo é também metáfora da constituição da América (nova aproximação a Gangues de Nova Iorque). Notável, neste sentido, é o modo como a problemática política é desenvolvida pelos criadores da série. Pelos seus olhos somos levados a ver como a América se formou, em parte, sobre doses massivas de violência, corrupção, mentira e ambição desmedidas, tanto dos indivíduos, como do aparelho político, administrativo e judicial do estado que se ia construindo à medida que se construía o país. Não há lugar a ilusões: se a América é o símbolo da liberdade e a terra dos sonhos e das oportunidades, estes estão indissociavelmente ligados, como a carne está ao osso, à lama e à sujidade ensanguentada do solo americano. Vamos ver estas imagens e ler alguns dos versos do velho Walt Whitman?

2 comentários:

j disse...

Cada vez com mais vontade de espreitar!

PB disse...

Vi os 2 primeiros episódios: 9,99999 ...