Os teus posts, LP, sobre MegaCities são muito estimulantes, confirmando que o filme é um desafio a pensar o modo como olhamos o mundo e as imagens do mundo. Sublinhas a indefinição de fronteiras entre documentário e ficção (uma questão que, pelo que percebi, é de grande actualidade no Festival Indie e, de uma forma geral, no debate entre profissionais e amadores desta área). Escreves que se trata de um filme, lembrando que o próprio autor fala em obra de arte, e não de um discurso político ou de uma reportagem. Quanto à possibilidade de ser uma reportagem, é questão relativamente pacífica; a encenação deve ser aí a absoluta excepção à regra, servindo apenas para reconstituir situações impossíveis de documentar e que, se for seguida a deontologia própria, tem de ser rigorosamente assinalada (e é aqui que a diferença com o trabalho de Glawogger fica marcada com um dos traços mais fortes) . Ainda assim, o mito da objectividade deixou há muito de ser assunto de debate, sabendo-se que o repórter só pode (e já não é pouco) procurar um olhar justo e equilibrado sobre a realidade que documenta, tentando interferir o mínimo possível nessa realidade. Já em relação à exclusão do discurso político da obra de arte não posso estar de acordo; só a escolha do tema já é, claramente, uma afirmação política. Não há (sobretudo aqui) olhares inocentes.
(foto: j, Lx, 25 de Abril 2006)
Ainda em relação à definição dos contornos do trabalho de reportagem - que talvez ajude a definir as fronteiras/limites do (deste) documentário e alguns pontos de contacto e antagonismo -, deixa-me citar o repórter/andarilho Pedro Rosa Mendes, na introdução ao livro "ilhas de fogo", Ed. ACEP, 2002:
"Sempre acreditei que o repórter é quem escreve a realidade partindo de uma convicção essencial: escrever sobre é escrever para. Escrever, pensando que o objecto da reportagem coincide - mesmo quando sabemos que isso é de todo improvável - com o seu primeiro leitor. Escrever, imaginando sempre que o fazemos cara-a-cara com quem está dentro do texto. Quando não é assim, em vez de reportagem, temos exotismo ou narcisismo. Abundam ambos actualmente. Matéria tóxica".
Substitui escrever por filmar, texto por filme, leitor por espectador e reportagem por documentário. Mesmo trabalhando em registos diferentes, quando o real é o ponto de partida e, nalguns casos, de chegada, há algo que pode ser semelhante, a começar pelo modo como respeitamos o outro.
Alguns casos que lembraste. Cassandra e o degradante espectáculo do corpo manipulável/manipulado. Quando falei em dignidade, referia-me ao olhar de Cassandra, fora do palco e, de certo modo, a um certo pudor que senti no modo como a câmara registou as incómodas cenas no bar. Escreves: "exploração voyeurista". Pergunto: não filmar, apaga a realidade? Não mostrar, torna-a menos degradante? O realizador contou-nos que Cassandra chorou quando viu o filme. Devia ter sido poupada a isso, como ser humano? E nós, continuávamos a desconhecer até que ponto é que o ser humano pode descer para sobreviver (ou ter um estranho prazer, no caso dos clientes do bar)? Claro que esta questão remete para outra, que citaste: "para que é que isto serve?" Na minha opinião, serve para nos tornarmos pessoas mais completas, mais conscientes, talvez melhor preparadas para a acção e para a relação com os outros. Outro caso, os combates dos cães. Sabemos que acontecem, todos os dias, na Cidade do México, em Lisboa, pelo mundo fora. Talvez aquele não tivesse ocorrido, sem a presença (e o pedido, certamente recompensado) da equipa de filmagens mas será justo dizer que o realizador é o mau da fita? Falas dos alcoólicos russos e da sua humilhação e colocas na mesa o binómio denúncia/exploração? Será que temos mesmo que escolher? Penso que o realizador denuncia (dá a conhecer) alguns casos extremos, explorando (tirando partido, elaborando um trabalho que lhe dá dinheiro) essa realidade. Mas falta, nesta complexa equação, uma outra e importante variável: o espectador!
Ver MegaCities deu-me prazer intelectual. Pela arte da filmagem, pela descoberta de novas realidades, de personagens mais espantosas que as de certas ficções. Deu-me prazer pelo desafio de interpretar e pensar o turbilhão, pela sinfonia desconcertante de sons (alguns raros/distantes). Ver MegaCities incomodou-me bastante mas deu-me muito prazer. Sou, por isso, cúmplice do realizador. E não estarei sózinho. Da plateia, na conversa final, alguém (um fã da Guerra das Estrelas?) perguntou a Michael Glawogger: para quando um MegaCities 2?
Duas notas finais.
Sobre a recompensa a quem aceitava ser filmado e sobre o carácter genuíno daquilo que foi dado a ver. É natural que, ao pagar (em dinheiro ou ajudando de alguma forma), se esteja a interferir no real, no ritmo, na naturalidade desse real. Ainda assim, não me parece que isso tenha levado a uma grande distorção .
Sobre o rótulo que deve ser colado a este objecto, MegaCities. Como todos os rótulos, será sempre redutor. Talvez seja mais correcto chamar-lhe filme e escrever, no final: qualquer semelhança entre o que aqui se viu e a realidade não é pura coincidência.
1 comentário:
A foto é excelente ...
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