3.4.06
K. vai ao Shopping (2º episódio)
(Cenas do episódio anterior: K. vai ao Shopping. Vê a Luz e, iluminado, circula dentro dela, como centenas de outras pessoas da Margem Sul e do Resto do Mundo. K. senta-se. E fica sentado.)
"Milhões de pessoas rumam a Sul". "Em direcção à baía do Seixal". Rumo a um "espaço com 138 lojas feito à medida dos seus desejos para que se sinta sempre em casa." Para que "encontre aqui tudo o que sempre quis, sem necessidade de rumar a Norte".
Todas estas frases podem ser lidas no encarte publicitário já aqui referido (rever o 1° episódio). E mostram bem como funcionam os mecanismos de indução ao consumo: a mensagem hiperbólica ("milhões"), quase bíblica, do movimento, como se de um gigatesco cardume se tratasse, rumando "a Sul" (diga-se, de passagem, que K. gosta desse "a Sul", em vez de um mais prosaico "para Sul"...).
"Oh Admirável Mundo Novo!", pensa K. (de novo). E pensa levantar-se, ele que continua sentado. Mas se o pensa, não o realiza. E permanece como estava, rodeado de passeantes, como se fosse uma ilha humana. "Uma entre centenas de ilhas", pensa K. E regressa aos números: depois da enormidade milionária, a escala mais reduzida, e exacta, das "138 lojas". Feitas "à medida dos seus desejos" - a macro-abstracção cede o lugar, numa retórica de fechamento, ao número mais acessível das lojas: 138. Nem mais, nem menos. (Mas algo perturba K.: "à medida dos meus desejos?", pensa ele. "Será possível que..." E não termina este seu pensamento, não quer terminá-lo... É um pouco assustador, este pensamento... Por isso, K. pensa noutra coisa...).
Concentra-se, de novo. K.. E concentra-se nos números: é esse fechamento que permite a focagem no sujeito individual que cada consumidor é: "à medida dos seus desejos". É óbvio, K. sabe: é disto, e só disto, que trata o discurso publicitário. Basic instints. Da cenoura à frente do burro. Do exacerbamento da necessidade de desejar. Seja do que for: poder, riqueza, prestígio, fama, sucesso, (su)sexo, etc. Desejo de tudo, desejo global, totalitário, que cria a ilusão de Tudo podermos: basta o cartão dourado do crédito. "Encontre aqui tudo o que sempre quis". E o que sempre quer? O que sempre quererá? Terão sido estas as palavras de Deus quando se dirigiu a Adão? Tens aqui Tudo o que sempre quiseste. O que queres mais? Não vês que esta é a medida dos teus desejos? Esta ânsia de "oferecer" Tudo é a promessa de um reino encantado na terra? O Centro Comercial é hoje o Paraíso do Mundo (sub)urbano português? A Nossa Verdadeira Casa: "para que se sinta sempre em casa". "Mas quem é que, sentindo-se vivo, pode sentir-se sempre em casa?", pensa K. que, muitas vezes, em casa, não se sente em casa.
Eis o que K. pensa a seguir: "Como resistir ao Paraíso? A esta Luz, a estas cores? A estas palavras falsas, inebriantes, ocas? A este ridículo? Pormenor caricato mas relevante (e revelador): a vontade de oferecer Tudo chega às casas-de-banho, onde se podem ler tiradas "filosóficas" do género para quem sonha não há impossíveis. Para quê pensar se tudo foi já pensado? Se o pensamento foi colocado ao nível do WC?" É isto que K. pensa antes de, finalmente, se levantar - para poder consumir, pois foi ao que veio. E K. levanta-se, leva a mão direita ao bolso. Sente a carteira. Toca-lhe com as pontas dos dedos. E sorri. K. sorri. Porque caminhar sorrindo é a maneira mais natural de prosseguir, por entre os outros, ladeado pelos outros. No Paraíso. K. sorri porque Aí não se controla o sorriso. Porque o sorriso já não é nosso, é uma espécie de reflexo da Luz.
Esse Grande Sorriso.
(continua)
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