15.4.07

Amigos, amigos... cinema à parte (sobre "The Departed - Entre Inimigos", de Martin Scorsese)


1) Compreendo este entusiasmo, mas (sorry...) não o partilho integralmente. The Departed - Entre Inimigos é, claro, um filme muito bem feito e Scorsese um profissional que não brinca em serviço. Mas, para mim, isso não é suficiente como ponto de referência para a avaliação do trabalho de um cineasta que já nos deu meia dúzia de filmes enormes e, pelo menos, três obras-primas assombrosas: Taxi Driver, O Touro Enraivecido e A Última Tentação de Cristo.

2) Na verdade, desde Casino, o seu último grande filme, a trepidação e o nervosismo geniais de Scorsese diluiram-se em filmes que, mesmo quando marcados a sangue, sofrem de um défice de paixão e risco que trai os propósitos do que, em tempos, foi o mais apaixonado (e apaixonante) realizador do cinema americano contemporâneo. O exemplo mais flagrante desta situação será O Aviador, mas Entre Inimigos ou Gangues de Nova Iorque também se deixam enfraquecer por um excesso de produção que não tem resultados equivalentes em termos de conseguimento cinematográfico. Dois sinais evidentes disto: por um lado, o olhar do realizador parece agora claramente distanciado em relação às narrativas que conta em geral, e em relação aos seus protagonistas em particular (um olhar demasiado frio, quase anti-scorsesiano...); e, por outro, uma impressão de paródia do seu próprio estilo que se tem imposto (facto sublinhado por diversos críticos), um Scorsese a fazer de Scorsese, o que contribui para a intelectualização de uma maneira de fazer filmes em que cérebro e emoções se equilibravam sempre na perfeição.

3) Tudo isto é verificável em Entre Inimigos. Por exemplo, a sequência final do filme retoma e rima com a sequência final de Taxi Driver. Mas o que era demência genial e vertiginosa no filme de 76, revela-se agora dejá-vu, terreno conhecido (e isto nada tem que ver, julgo, com a natureza de filme-remake de Infiltrados, filme que não vi), demasiado conhecido para interessar verdadeiramente o espectador, roçando o gratuito (pormenor revelador: enquanto a câmara filma o massacre final de Taxi Driver em cima dos acontecimentos, fazendo parte deles, agora a câmara olha como que protegida por uma zona de segurança, não se aproximando em demasia, protegendo-se das explosões e dos salpicos de sangue). E este, parece-me, é o tom geral do filme. O que não significa que, em alguns momentos, sintamos como o realizador está vivo, ainda que adormecido. Como um grande predador artístico, uma espécie de urso gigante, em letargia, na sua gruta durante o Inverno. À espera de reaparecer, a qualquer momento.

4) Dois exemplos apenas. Primeiro exemplo: bastante mais conseguida, e perturbadora, que a sequência dos tiros e assassinatos do final do filme, é a cena da queda do capitão da polícia (Martin Sheen) na rua, no momento em que o agente infiltrado no seio dos criminosos (Di Caprio) está em fuga. A suspensão que se segue (o que fazer? continuar a fuga? sair do carro para perceber o que aconteceu? cumprir as ordens? etc.), que dura alguns segundos, é absolutamente Scorsese vintage... mas, precisamente, dura apenas alguns segundos. Segundo exemplo: a sequência, logo no início, da formação cruzada dos dois jovens futuros polícias (gato e rato um do outro ao longo de todo o filme). Veja-se a aula de Balística Terminal, o contraste entre a pose aprumada, concentrada e limpa dos cadetes e aquilo que aprendem através do discurso claro, mas como que automatizado e enfastiado, do formador: o terrível poder de violência, sofrimento e morte que potencialmente poderão provocar, ou sofrer, por meio das armas que passarão a usar. Tudo servido através de uma montagem que articula imagens, palavras e banda sonora que só pode ser considerada como perfeita. É possível, portanto, manter viva a ideia de que o autor de Os Cavaleiros do Asfalto ainda tem muito bom cinema para nos apresentar.

5) É, pelo menos, essa a minha esperança de scorsesiano interessado. Que o homem, conseguido finalmente o Óscar, deixe de fazer "filmes para Hollywood ver" e regresse ao cinema. Cá nos reencontraremos...

3 comentários:

j disse...

Tenho que ver isso. Mas que bom, o regresso do nosso apaixonado e minucioso crítico! :-))Rapaz, vai ver o "Climas" logo que possível - é outra onda mas absolutamente recomendável. Tenho (quase, quase) a certeza de que vais gostar muito. Um abraço

Lp disse...

Haja oportunidade, que vontade não falta. Outro(s).

kithara azul disse...

Wow. Depois desta descrição (em que a cada frase parecias estar a traduzir por palavras tudo o que o filme me proporcionou em emoções) só posso garantir que passarei algum tempo a ler com minúcia os restantes posts. ;) Excelente blog.