23.4.07

Coisas sérias & de folgar

Vem lá de longe, do fundo dos tempos, o uso do palavrão na literatura e, particularmente, na poesia. É uma longa tradição que convive com a chamada literatura séria, coisa tão séria que gerou as "belas-letras" e confunde o escrever bem com essa aventura imprópria para pessoas sensíveis (cf. o poema de Sophia) que tem sido historicamente, tantas vezes, um acto de coragem e de contra-corrente. No caso português, talvez o começo se localize nos cancioneiros medievais (séculos XII a XIV), as colectâneas que garantiram a sobrevivência das belíssimas cantigas de amor e de amigo galego-portuguesas, mas também as de escárnio e mal-dizer, nas quais o folguedo, a sátira desbocada, o insulto empolado e a ofensa são reis & rainhas incontestáveis. Com a respectiva linguagem, curta e grossa, como neste exemplo obsceno de Afonso Eanes de Coton: "Marinha, en tanto de folegares / (...) tapo-t'ao primeiro sono / da mia pissa o teu cono (...)" (cf. Antologia da Poesia Galego-Portuguesa, organização de Alexandre Pinheiro Torres, Lello & Irmão, Porto, 1987, 2ª edição, p. 215). Talvez valha a pena lembrar que Natália Correia acolheu uma parte deste "tesouro" poético-linguístico na sua volumosa Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, reeditada em conjunto, em 1999, pelas editoras Antígona e Frenesi. Uma celebração e um prazer para o espírito e para os sentidos. Uma espécie de reencontro com uma das vocações essenciais do texto poético: a de nos confrontar com a nossa imperfeição, com o que queremos apagar, mas nos constitui essencialmente - um corpo no tempo, no espaço, à procura de outro corpo, da sua carne e do seu calor vital (portanto, da vida, da aura da vida, da alma). Por isso, para além da dimensão carnavalesca ou transgressiva (bem visível, por exemplo, através das experiências das crianças no uso das palavras feias que os adultos proibem), o recurso ao palavrão é também uma forma de recuperação de uma candura para sempre perdida. No fundo, uma tentativa impossível de voltar ao tempo em que as palavras não tinham ainda significados bem precisos, em que só havia palavras e palavrinhas. O tempo do jogo e do amor sem culpa nem pecado, como a água de um rio desconhecido ou o ar das montanhas agrestes. O tempo da inocência desaparecida, facto que o poeta lamenta num misto de ironia e tristeza infinda.

6 comentários:

j disse...

Belo enquadramento, prof! (Espero que não estejas a justificar nada, que isto é um café de libertinos, perdão, de liberdade!)

Lp disse...

Liberdade de expressão, de expansão do pensamento.

CCF disse...

Ó LP para esta poesia é ainda preciso mais arte! Que a coisa flua naturalmente como água e não seja assim um óbvio choque à burguesia (para já não falar no clero e na nobreza...). O poema da Luiza Neto Jorge é bem bonito, deixa falar o corpo e pronto. E viva a liberdade estética e já agora... todas as outras....:)
~CC~

Lp disse...

Reescrita de LNJ e CCF

"Meia palavra a bom entendedor
deixa o corpo falar
e pronto"

Parece-me bem.

Cristina Gomes da Silva disse...

A mim também me parece bem, mas conversa com ele, se puderes.

Lp disse...

Também me parece bem.