Em 1990, Albano Martins (n. 1930) reuniu, num volume prefaciado por Eduardo Lourenço, a sua poesia publicada até à data. Chamou-lhe Vocação do Silêncio - Poesia (1950 - 1985) (Lisboa, IN-CM). Sensivelmente a meio do livro, a páginas 157 e 158, dá-nos a ler um poema constituído por 17 estrofes (15 quadras e 2 dísticos finais), cujo título é "Teoria do Conhecimento". A primeira das estrofes reza assim:
"De bicicleta vou
no encalço das
íntimas, súbitas
relações. Mas"
É o início de um poema que se apresenta implicitamente como uma poética autoral, quer dizer, um texto através do qual o autor pensa a poesia como modo de entendimento das coisas interiores e exteriores a si; portanto, da poesia como uma "teoria do conhecimento" que, em simultâneo, se encena como uma teoria do conhecimento, desdobramento do poema como sujeito e objecto de conhecimento ("espelho e imagem", diz o poeta na 5ª estrofe). Nesta medida, o poema é tanto a bicicleta que permite o movimento do poeta como a própria viagem de descoberta das "íntimas, súbitas / relações" que organizam os fenómenos e a sua percepção. No entanto, o empreendimento do poeta, esse desejo de conhecer, de ir "no encalço", não tem garantida nenhuma espécie de sucesso. Pelo contrário, logo no fim dessa 1ª quadra encontramos a conjunção adversativa "mas" que restringe, fatalmente, a capacidade de se alcançar o que se deseja. Há uma óbvia negatividade, uma força contrária que retrai a movimentação do poeta-ciclista. Ele di-lo da seguinte maneira (4ª estrofe):
"Sobre rodas é que
se movem meus passos.
De cera compacta
são os trilhos (...)"
O movimento é travado parcialmente pela natureza do piso: "cera compacta". No entanto, é nessa mesma superfície difícil que o poema pode ser escrito, traçado: "traços // que as rodas (...) / desenham / à sua passagem". Pelo que escrever é uma forma árdua e dura de avançar no e de conhecer o mundo. Um "diário exercício" que exige uma entrega radical daquele que se dispõe ao conhecimento, ainda que precário e falível, pela escrita. Razão de ser e de viver, a poesia serve para alguém (o poeta ou o leitor, tanto faz) procurar "conhecer a sua / razão de estar / voltado a ocidente"(11ª estrofe), ou seja, para buscar o entendimento de si no seu tempo, no espaço onde se encontra com outros. Talvez aqui se possa referir que este poema de Albano Martins fecha um livro de um tempo concreto e determinado, Em Tempo e Memória, de 1974, no qual se pensa o presente como parte de uma continuidade histórica, cultural e poética que configura aquele que escreve e por ele é reconfigurada
"(...) por razões
idênticas ou
alheias viveram
outros onde estou"(12ª estrofe).
Este encontro, que é igualmente confronto, com os outros (passados e contemporâneos) é essencial para o poeta, na sua viagem de ciclista-observador-descobridor do que existe em si e fora de si. Assim, descoberta do mundo e descoberta dos outros, a viagem do poeta é retorno a si mesmo descobrindo-se outro, em permanente mudança. Pedalar, avançar nos vastos ou vagos territórios da vida é uma forma de se reconstruir no tempo e no espaço, descobrindo-se, no final do poema, ser em movimento sempre contraditório:
"Ali me divido,
me concentro, inscrevo
a sumária legenda
do que sou e devo
ao meu próprio e
natural tamanho.
De bicicleta vou
nas rodas que tenho."
Aceitação do desencontro como conhecimento de si, modo de testar e alargar os limites conhecidos, de levar alguém a reconfigurar a cada momento o seu "próprio e / natural tamanho", eis uma sabedoria essencial do poema: lição de humildade em relação às coisas e aos outros, modo de contestar dogmas, certezas, absolutos. Força fundamental da poesia, essa arte lenta e custosa de trepar montanhas. Ou perigosa e alucinada de mergulhar em descidas e abismos. Ou suave e doce de deslizar em planícies. Ou tudo isto baralhado para se dar de novo.
"De bicicleta vou
no encalço das
íntimas, súbitas
relações. Mas"
É o início de um poema que se apresenta implicitamente como uma poética autoral, quer dizer, um texto através do qual o autor pensa a poesia como modo de entendimento das coisas interiores e exteriores a si; portanto, da poesia como uma "teoria do conhecimento" que, em simultâneo, se encena como uma teoria do conhecimento, desdobramento do poema como sujeito e objecto de conhecimento ("espelho e imagem", diz o poeta na 5ª estrofe). Nesta medida, o poema é tanto a bicicleta que permite o movimento do poeta como a própria viagem de descoberta das "íntimas, súbitas / relações" que organizam os fenómenos e a sua percepção. No entanto, o empreendimento do poeta, esse desejo de conhecer, de ir "no encalço", não tem garantida nenhuma espécie de sucesso. Pelo contrário, logo no fim dessa 1ª quadra encontramos a conjunção adversativa "mas" que restringe, fatalmente, a capacidade de se alcançar o que se deseja. Há uma óbvia negatividade, uma força contrária que retrai a movimentação do poeta-ciclista. Ele di-lo da seguinte maneira (4ª estrofe):
"Sobre rodas é que
se movem meus passos.
De cera compacta
são os trilhos (...)"
O movimento é travado parcialmente pela natureza do piso: "cera compacta". No entanto, é nessa mesma superfície difícil que o poema pode ser escrito, traçado: "traços // que as rodas (...) / desenham / à sua passagem". Pelo que escrever é uma forma árdua e dura de avançar no e de conhecer o mundo. Um "diário exercício" que exige uma entrega radical daquele que se dispõe ao conhecimento, ainda que precário e falível, pela escrita. Razão de ser e de viver, a poesia serve para alguém (o poeta ou o leitor, tanto faz) procurar "conhecer a sua / razão de estar / voltado a ocidente"(11ª estrofe), ou seja, para buscar o entendimento de si no seu tempo, no espaço onde se encontra com outros. Talvez aqui se possa referir que este poema de Albano Martins fecha um livro de um tempo concreto e determinado, Em Tempo e Memória, de 1974, no qual se pensa o presente como parte de uma continuidade histórica, cultural e poética que configura aquele que escreve e por ele é reconfigurada
"(...) por razões
idênticas ou
alheias viveram
outros onde estou"(12ª estrofe).
Este encontro, que é igualmente confronto, com os outros (passados e contemporâneos) é essencial para o poeta, na sua viagem de ciclista-observador-descobridor do que existe em si e fora de si. Assim, descoberta do mundo e descoberta dos outros, a viagem do poeta é retorno a si mesmo descobrindo-se outro, em permanente mudança. Pedalar, avançar nos vastos ou vagos territórios da vida é uma forma de se reconstruir no tempo e no espaço, descobrindo-se, no final do poema, ser em movimento sempre contraditório:
"Ali me divido,
me concentro, inscrevo
a sumária legenda
do que sou e devo
ao meu próprio e
natural tamanho.
De bicicleta vou
nas rodas que tenho."
Aceitação do desencontro como conhecimento de si, modo de testar e alargar os limites conhecidos, de levar alguém a reconfigurar a cada momento o seu "próprio e / natural tamanho", eis uma sabedoria essencial do poema: lição de humildade em relação às coisas e aos outros, modo de contestar dogmas, certezas, absolutos. Força fundamental da poesia, essa arte lenta e custosa de trepar montanhas. Ou perigosa e alucinada de mergulhar em descidas e abismos. Ou suave e doce de deslizar em planícies. Ou tudo isto baralhado para se dar de novo.
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