13.2.07

Bicicletas na Poesia Portuguesa Contemporânea 7


Dos poetas referidos aqui a propósito de bicicletas, o de hoje, Manuel Alegre, foi o primeiro de que li alguns versos. Lembro-me bem onde, quando e por causa de quem. E recordo com igual precisão o poema que me revelou o nome do autor: "As mãos", um soneto sobre as capacidades humanas, antitéticas, de construção e de destruição ("Com mãos se faz a paz e faz a guerra..."). Eu devia ter uns 13 anos e sou capaz de rever, com clareza mínima, essa aula, o professor, a impressão fortíssima que o texto (organizado esquematicamente, com imagens legíveis quase de imediato...) me causou. Manuel Alegre é, para mim, o autor desse poema, desse momento de descoberta da poesia como lugar de apresentação do homem e das suas contradições. E isto, aos 13 anos, tem o seu peso! Não me tornei, depois, leitor assíduo de Alegre (na verdade, tenho sido um seu leitor mutíssimo irregular...), mas esse poema existe, para mim, como uma das mais gratas e intensas experiências de leitura de que guardo memória. Prova de que não é preciso ser-se um grande poeta (sendo um autor respeitável, não tem, parece-me, MA a dimensão de outros do século que passou e já deste) para se ser um poeta importante para alguns leitores (ou, basta um, leitor?). De resto, não é do poeta que venho aqui falar, mas, sim, de um seu poema. Para ser mais preciso, da sua "Bicicleta de Recados", peça velocipédica do seu primeiro e famoso livro Praça da Canção (de 1965). Texto com quatro estrofes, irregulares quanto ao número de versos, livres e soltos, terminam as ímpares com um ("ouvir o meu recado ouvir a minha canção") e as pares com outro verso ("atravessando a madrugada dos poemas"). E começa assim:

"Na minha bicicleta de recados
eu atravesso a madrugada dos poemas
pedalo nas palavras atravesso as cidades
bato às portas das casas e vêm homens espantados
ouvir o meu recado ouvir a minha canção."

Alegre assume-se, é bom de ver, como continuador de um neo-realismo que se quer reinventar como estética da urgência e da resistência no seu tempo (anos 60, guerra colonial, ditadura de décadas, país bloqueado...), recorrendo a uma temática humanista de forte pendor político e social. O poema, a "bicicleta de recados", é o meio de atravessar a "madrugada", metáfora hoje pouco actuante mas que funcionou, em certos contextos, em certos meios , como imagem de uma situação histórica de negatividade óbvia (lembram-se de expressões como "a longa noite fascista"? ou não são desse tempo, ó camaradas?), que, dialecticamente transportava em si a esperança, a luz da manhã que há-de chegar. Assim, através do poema (que tem uma mensagem, um "recado"; e que é uma "canção" - condição determinante para que alguma da poesia de Alegre fosse, de facto, musicada), o poeta agita as consciências, desperta e espanta os outros, faz do poema "uma arma". Esta visão romântico-revolucionária do poeta e da poesia assenta num patriotismo histórico e concreto ("Eu não sou o João que foi à Índia / mas trago todos os soldados que partiram "(v.v. 13-14)) e numa geografia nacional ("Desde o Minho ao Algarve / eu vou pelos caminhos"(v.v. 19-20)) que hoje parece expressivamente datada e, por isso, deve ser relida em ligação com a situação política, mas também cultural e poética desses anos de 60. Estas palavras têm, obviamente, o seu tempo, e isso merece atenção. Talvez a questão possa ser colocada nestes termos: aquilo que me cativou, com 13 anos, no poema "As mãos" de Alegre (mas podia ter sido esta "Bicicleta de recados") foi a sua força comunicativa imediata, a sua transparência, a sua veemência quase ingénua, o seu optimismo empenhado e sincero, o que se manifesta tanto através da simplicidade dos processos como pela franqueza das temáticas (vida / morte, criação / destruição). São processos de grande eficácia quando se pretende uma comunicação imediata de determinada "mensagem" ética ou ideológica... mas também são pouco desafiadores para os que, como eu, hoje, procuram num poema aquilo que um poema não pode dizer, dizendo. Ou seja, em vez do "recado" a "bicicleta" - em vez de uma mensagem já definida, que se transporta de um lado para o outro como "fórmula" mais ou menos definida, a busca, o movimento, a errância sem sentido definido à partida. Por isso a possibilidade da perda e da descoberta do que não se esperava descobrir. Do não dito, do verdadeiro espanto. Bom, escrevo isto no mesmo momento em que a RTP apresenta (suponho, não tenho o televisor ligado, o documentário sobre Salazar como "grande português"...). É um facto espantoso, creio. Talvez alguns versos de Alegre continuem, afinal, a ser necessários.


1 comentário:

PB disse...

Como um povo é capaz de perder a memória e vangloriar alguns dos maiores bandidos da sua história ...