15.2.07

Bicicletas na Poesia Portuguesa Contemporânea 8


Já vai longa esta série de posts sobre poetas, bicicletas & demais andanças. Portanto, antes que os 2 ou 3 leitores que aqui me têm acompanhado se cansem de tanta pedalada, quero declarar já que estão previstos apenas mais dois textos sobre estas tão graves questões velocipédicas: o de hoje, sobre um poema de Nuno Artur Silva, "Sentido", publicado em Onde o Olhar (Lisboa, Indício, 1986), livro que V. Exas. bem conheceis; o último, um poema de Albano Martins, "Teoria do Conhecimento", pode ser lido na sua Vocação do Silêncio - Poesia (1950-1985), (Lisboa, IN-CM, 1990, pp.157-158). Só mais uns gramas de coragem e de suor, companheiros ciclistas... estamos quase lá!

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"Sentido" é o poema que fecha a "V" secção de Onde o Olhar, obra de estreia poética, ao que sei, do agora muito conhecido mentor das Produções Fictícias. E é um poema inesquecível para quem goste de poesia e de bicicletas. Relembro-o, com prazer, na íntegra:

"Tschk tschk tschk tschk tschk
o som dos pedais

Aqui vou eu a pedalar sempre a bicicleta
pela estrada a atravessar a floresta a atravessar
o sonho e a luz do sol por entre as árvores

Tschk tschk tschk tschk tschk
o som dos pedais

Estou para além de mim é infindável
o horizonte entra pela memória dentro
o vento é inexplicável o vento

Tschk tschk tschk tschk tschk
o som dos pedais

Pode ser que eu me despiste e fique
imóvel a bicicleta no chão de roda
para o ar a rodar sempre ou pode ser
que eu não pare nunca pode ser que
não fique nada senão a própria velocidade

Tschk tschk tschk tschk tschk
o som dos pedais

Uma borboleta atravessa o olhar
Uma borboleta?

Tschk... hiiiii... schkSCHJTRAPTPOUGHTTT!!!
tschksssssssssss" (p.72)

Motivos para ser este um poema inesquecível para quem gosta de poesia e de bicicletas? Muitos e variados. Enumero apenas alguns. Primeiro, o uso divertidíssimo e conseguidíssimo das onomatopeias (mas também de repetições e aliterações) para dar a ouvir "o som dos pedais" ("Tschk tschk...", etc.), som que funciona como refrão do poema (é repetido 4 vezes), alternando com as 4 estrofes que vão introduzindo informação nova (referência a lugares, breves pensamentos...) sobre a viagem que o sujeito poético descreve / elabora. Depois, a simplicidade da linguagem e das imagens a que o poeta recorre (por exemplo, v.5: "o sonho e a luz do sol por entre as árvores"; ou o v.10: "o vento é inexplicável o vento"), devedora, sem dúvida, de certas leituras pessoanas (o heterónimo Alberto Caeiro parece ser o "motivador" óbvio de tais formulações). Um terceiro aspecto importante a considerar seria o dinamismo conseguido pela ausência de pontuação (à excepção da interrogação na penúltima estrofe e das exclamações da última), o que permite a criação de uma impressão de confusão ou indistinção entre a vida interior do sujeito (a "memória dentro"(v.9)) e o mundo exterior (o "horizonte", "o vento", etc.), bem como a indeterminação entre aquilo que acontece e o que poderia / poderá acontecer (no poema e ao poeta), visível na estrofe mais longa, a sexta, que volto a lembrar:

"Pode ser que eu me despiste e fique
imóvel a bicicleta no chão de roda
para o ar a rodar sempre ou pode ser
que eu não pare nunca pode ser que
não fique nada senão a própria velocidade"

Aqui talvez valha a pena regressar a Pessoa, se bem que desta vez não a Alberto Caeiro. Talvez o heterónimo apropriado seja agora Álvaro de Campos e o seu desejo de não parar "nunca", de ser "a propria velocidade", visível na sua poesia da fase futurista / sensacionista: "poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!", como declara na "Ode Triunfal" o engenheiro naval formado em Glasgow. De resto, a utilização, como vimos atrás, das onomatopeias por Nuno Artur Silva remete em linha directa para o Campos dos "r-r-r-r-r-r-r eterno!" e "Z-z-z-z-z-z-z-z-z..." da referida "Ode...". Estes últimos aspectos conduzem-nos, então, ao final do poema, que é naturalmente o seu ponto culminante - o jogo entre a penúltima e a última estrofes (já preparado pelas duas imediatamente anteriores), ou seja, o despiste do poeta-ciclista provocado por uma borboleta, espécie de comprovação empírico-poética da famosa "teoria do caos": "uma borboleta atravessa o olhar" (v.20) e tudo acaba em queda aparatosa, com a respectiva explosão sonoro-catastrófica (com qualquer coisa de clímax orgasmático à mistura!) do dístico final:

"Tschk... hiiiii... schkSCHKTRAPTPOUGHTTT!!!
tschksssssssssss"

Se toda a minha leitura deste poema pressupôs em Nuno Artur Silva a presença de uma inegável influência poética pessoana (mas nada ansiosa, antes divertida, bem disposta, como um passeio de ciclo-turismo), então talvez eu deva terminar defendendo que há aqui implicitamente uma questão de poética, uma espécie de relação mais ou menos conflituosa entre uma poesia da natureza (da borboleta e dos seus efeitos) e uma poesia da máquina (a bicicleta e os seus movimentos), uma poesia do rural e do campestre e uma poesia do urbano e da queda, parecendo mais forte, para o poeta, a primeira, pois o ondular da borboleta é suficiente para derrubar o ciclista e a sua máquina. Caeiro mais forte do que Campos, portanto. E isso explicará muito o tom simples, bucólico deste livro de Nuno Artur Silva, todo ele escrito sob o signo do "olhar. Ora, é precisamente em Caeiro que encontramos uma poética fundamental do olhar, como qualquer leitor de Pessoa sabe: "O meu olhar azul como o céu / É calmo como a água ao sol" ou "O essencial é saber ver" (Alberto Caeiro, "O Guardador de Rebanhos"). Pegamos nas bicicletas e vamos dar umas voltas pelos campos?

(Este post é uma homenagem ao ano de 1986 e a um certo programa de rádio posterior; é também uma breve homenagem a David Mourão-Ferreira; é, por fim, desnecessário será dizer, dedicado a C., leitora apaixonada de Caeiro)

1 comentário:

j disse...

Estas tuas pedaladas vigorosas são uma bela ideia. Nenhum cansaço, siga a viagem, meu caro!