6.2.07

Bicicletas na Poesia Portuguesa Contemporânea 5


Ainda José Miguel Silva e os seus Movimentos no Escuro. Na linearidade da obra, mas sobretudo na sua economia semântica, a "Ladrões de Bicicletas..." segue-se, a páginas 21, "O Rapaz de Cabelo Verde - Joseph Losey (1948)". Estes dois poemas formam uma espécie de díptico, não tanto por citarem obras cinematográficas do mesmo ano (1948), ainda que de tom e "conteúdo" distintos, mas porque o leit-motif da bicicleta os une intrinsecamente. Em "Ladrões de Bicicletas...", como procurei notar ontem, trata-se de rememorar uma vivência de raíz familiar que tem amplas implicações de ordem poética e política (e aqui gostaria de chamar a atenção para uma das epígrafes da obra, na qual se cita Fernando Assis Pacheco para manifestar, em tempos como os nossos, uma ética expressiva que recusa a afirmação enfática ou rebarbativa: "Peçam a grandiloquência a outros / acho-a pulha no estado actual da economia"...). Neste segundo poema de Movimentos no Escuro, de modo diferente, o sujeito revela-se como protagonista da sua própria evocação, papel desempenhado pela figura paterna no poema ontem referido. E apresenta-se logo no primeiro verso do poema: "O rapaz de cabelo verde era eu, em finais de setenta". Esta identificação entre o rapaz do filme e o rapaz do poema configura-se, talvez se possa dizer, através do tópico da fuga aos "chacais" ("a turba / dos chacais acometia as minhas pernas de pardal"), fuga que se processa, como já estarão a imaginar, por meio de uma bicicleta: "só de bicicleta me tirava eu de apuros." No entanto, esta já não é uma bicicleta de fuga imaginária, como no poema de Luís Veiga Leitão; nem uma bicicleta simbólica e mítica, como em Herberto Helder; ou, sequer, um meio de transporte de um pai operário a caminho da fábrica. Na verdade, esta é apenas a bicicleta que se usa na infância para ir "por entre silvas e valados" descobrir os tesouros do mundo a pedir descoberta, mas também os perigos e os "filhos de uma puta!", dos quais se acaba a fugir a caminho de casa (como um pardal a explorar o exterior e a regressar ao ninho):

"Pedalava sobre lágrimas, de volta aos braços
do meu sangue, trepava para o muro do quintal
e de lá esconjurava os assassinos: filhos de uma puta!"

Depois isto passa, como tudo. Passam os anos. Passaram os anos - e os rapazes crescem, amadurecem, deixam de ser verdes. Uns tantos perdem mesmo o cabelo, não importando a cor. As bicicletas são abandonadas. E alguns dos que fugiram passam a ser os que perseguem. Chegam os tempos da perda da inocência, do "primeiro cigarro, (d)o exame dos colhões"(v.13). O tempo de concluir de forma idiota "que sorte / ver as lágrimas cair e não serem as minhas." (vv. 13 e 14). Um pouco mais tarde virá ainda outro tempo - o dessa espécie de loucura assombrada, mas frágil e inútil, a que chamamos poesia: movimentos no escuro.

2 comentários:

JMS disse...

Certeiro comentário. Obrigado. E uma confidência: vinte e cinco anos depois, aos trinta e cinco, voltei a descobrir os prazeres da bicicleta. Morte ao automóvel.

JMS disse...

Curiosamente, dou por mim a pensar que nos meus poemas as bicicletas aparecem com alguma frequência e sempre ligadas à infÂncia. Nunca tinha reparado nisso. Mas infância é quase sinónimo de bicicleta, não?