5.2.07

Bicicletas na Poesia Portuguesa Contemporânea 4


Agora que na China, um país - dois sistemas, as bicicletas vão sendo substituídas pelos automóveis e todos os ministros da economia dizem verdadeiramente o que pensam (ou seja, que em Portugal os trabalhadores devem retornar à bicicleta, não em nome do ambiente, mas da competitividade!), regressemos aqui ao neo-realismo. Desta vez, ao neo-realismo cinematográfico italiano dos finais dos anos 40: regressemos a Ladrões de Bicicletas, o filme que Vittorio de Sica realizou no pós-guerra italiano (recentemente saído em DVD, edição Costa do Castelo/FNAC). É este clássico sobre "fome, miséria e desemprego" que José Miguel Silva evoca, de maneira explícita, no seu muito cinéfilo e excelente livro Movimentos no Escuro (Relógio D'Água, 2005). O poema que me interessa intitula-se precisamente "Ladrões de Bicicletas - Vittorio de Dica (1948)" (p.20) que, com a devida vénia, aqui transcrevo:

"Mil quilómetros por dia pedalava meu pai, desde
a cama junto ao Douro até à prospera Cerâmica
de Valadares. Se qualquer homem recebe,
à nascença, uns sessenta inimigos por hora,
imaginem a jornada de um operário ciclista.
Tudo são despesas para ele: o rosário da geada
nas giestas, o jornal atropelado pelo vento, o verdor
da Primavera, a poalha do suor em cada mão.

Meu pai, é claro, não se queixa, ganha um conto
de réis, tem uma casa portuguesa e grandes sonhos
de amanhãs a gasolina. Pelo menos não trabalho
em nenhum matadouro, pensa ele, e com razão,
erguido nos pedais do seu veículo de sombra,
solitário trepador pela encosta de Avintes. Não
trabalha em nenhum matadouro. E nesse reconforto
passa à Quinta dos Frades, alcança o Freixieiro,
sente já o rumor de fumacentos camiões na nacional,
onde tudo, depois, será muito mais plano."

O filme é o pretexto para um filho recordar / imaginar as andanças velocipédicas diárias de um pai "operário ciclista" a caminho da Fábrica. Mas estas andanças nada têm de épico; este "neo-realismo contemporâneo" nada sabe de revolução e pouco de esperança: há muito que "os amanhãs não cantam"!. Pelo contrário, tudo são despesas", obstáculos, vida dura como a própria viagem até à "Cerâmica de Valadares": "suor em cada mão." Mas se esta é uma visão familiar desencantada sobre os meios operários portugueses do final do século XX (anos 70?), ela também não cede ao miserabilismo, porque aqui ninguém se queixa. Na verdade, há até esperança, os operários têm um sonho. Nem mais nem menos, o de participar, ainda que em forma de migalhas, no grande "Sonho" da sociedade capitalista-consumista-neo-liberal: "não se queixa, ganha um conto / de réis, tem uma casa portuguesa e grandes sonhos / de amanhãs a gasolina". Mudar da bicicleta para o carro, eis ao que se resume cruamente a revolução operária e o seu imaginário. Em Avintes como em Pequim. E, deste modo, o mundo parece estar cada vez mais condenado a tornar-se um lugar "onde tudo, depois, será muito mais plano". É neste mundo de aparências que escondem a redução do homem a objecto que se (des)encontram os operários e todos os ministros da economia.

(José Miguel Silva nasceu em 1969. Publicou 5 livros de poesia. Movimentos no Escuro é, até ao momento, o seu último livro).

3 comentários:

j disse...

Bem tecido, o texto, com versos e reversos!

Mónica (em Campanhã) disse...

Ó L, eu cresci junto à cerâmica de Valadares cuja sirene (à 1.10) precedia o toque para almoço na escola (1.20): escusado seria dizer que os profs já não conseguiam mais nada de nós nesses 10 minutos em que à sucapa começávamos a arrumar.

ah, e no princípio a minha mãe também ia de bicicleta trabalhar, grávida!

Lp disse...

Engraçado, M... caso para dizer: no princípio era a bicicleta...