11.9.06

11 de Setembro de 2006

Uma vez que não lembro de quase nada do 25 de 74, posso dizer que, na minha vida, há dois acontecimentos em que vi a história a ser engolida pelo presente, dois momentos que nada pôde deter. E, a partir deles, algo mudou em mim (ou continua a mudar). E muito mudou no mundo. São aqueles momentos em que lembramos muito bem onde estávamos, com quem, a fazer o quê. Momentos de fractura, de antes e depois. O primeiro ocorreu em Novembro de 1989: de repente, o Muro de Berlim estava a ser derrubado. Simbólica e politicamente, num primeiro instante. Depois, literalmente, com martelos e ponteiros. Eu estava no Chiado, num fim de tarde húmido mas agradável, no Clube Português de Artes e Ideias, a ajudar a organizar um ciclo de conversas sobre o pós-modernismo. Alguém entrou trazendo essa notícia e fiquei espavorido, sem chão para pisar. Corri para a rua crepuscular e comprei a edição (penso que seria a segunda desse dia) do saudoso Diário de Lisboa, com uma grande fotografia de uma faixa do Muro a ser derrubada pela multidão. Uns anos depois, trouxe de Berlim dois ou três fragmentos do que restava dessa Cortina de Ferro, arrancados de forma rápida e clandestina com um martelo e uma chave de fendas que A. nos emprestou. E disse: "Ich bin ein berliner." O outro acontecimento foi (ou é? o tempo verbal correcto é o pretérito? ou o presente?), claro, o ataque de há cinco anos. Acabado de chegar da escola, para almoçar, assisti espantado, depois horrorizado, via Jornal da Tarde da SIC, à sequência inimaginável de acontecimentos desse dia. Não esquecerei a incapacidade do Paulo Camacho, reflexa da nossa, de compreender inicialmente o perfeito estupor que as imagens da CNN mostravam: em directo, o segundo avião acabara de embater, e ele dizia-nos que eram imagens do avião a embater no WTC. Precisámos todos de algum tempo, quanto?, para compreendermos que eram dois (e depois ainda mais dois) os aviões... e não um! De resto, continuo a sentir que não compreendemos, que algo de fundamental nos escapa, que as imagens mostram o terror, mas que elas são insuficientes para explicar o que aconteceu. Que alguém está a esconder partes importantes do todo. Isso de que falas, J.: tristeza, compaixão, solidariedade incondicionais com a memória das pessoas que morreram naquele inferno ou dele escaparam; com as pessoas que ajudaram outras a sobreviver (o livro que referes conta algumas dessas histórias admiráveis de sacrifício, profissionalismo, sentido humanitário); com as famílias que choram os seus mortos. Mas também o problema. O incómodo. O fanatismo alimentado pelas políticas cegas e militaristas da administração americana. Saber que isso não resolve nenhum problema, só cria mais problemas (o Iraque, mais vítimas inocentes, o crescendo do terrorismo...) E saber que a democracia tem de se defender dos seus inimigos óbvios (os terroristas), mas também dos inimigos menos óbvios, lobos com pele de cordeiro. Saber que ser nova-iorquino é também saber isso. Poder dizer isso. Poder dizer, na margem sul do Tejo, às dez e meia da noite portuguesa, em português: "Também eu sou um nova-iorquino." Sem ponto de exclamação.

Sem comentários: