Crash. O título do filme diz muito mais do que "colisão": estrépito, estampido, estrondo, destruição, ruína, bancarrota, queda (por exemplo, de um aeroplano no solo...). E diz muito sobre o filme, tão inesperado e belo. Tão triste e realista, se bem que tocado por uma espécie de ensinamento sobre as coisas da vida. Um ensinamento que não é novo, não há aqui qualquer pretensão de novidade filosófica; já dominamos esta matéria, mas aprendemo-la de novo. Aprofundamos. A ideia simples de que não podemos nunca saber o que nos vai acontecer a seguir. Alguém, ou alguma coisa, poderá colidir connosco. Ou nós podemos colidir com alguém, ou alguma coisa. Sem querermos. Ou querendo uma coisa e provocando outras. De resto, o filme parece querer dizer-nos que as nossas vontades ou intenções de pouco servem na vida real. As coisas acontecem, e pronto. Aceitamo-las melhor ou pior, ou não as aceitamos de todo. Mas elas já aconteceram e estão a acontecer. E viver é isso. Acidentes (não, particularmente, de natureza automobilística), incidentes, acasos, enganos, trocas, equívocos, sorte e azar, tempo certo e local errado, ou local certo e tempo errado. Ou outra qualquer variação que não dominamos. Sendo um filme sobre Los Angeles, trata de tudo isto numa perspectiva singular: partindo do pressuposto de que essa não é uma cidade como as outras. Qual será, então, a diferença da cidade dos Anjos (directamente citados no episódio do iraquiano que dispara sobre a rapariguinha de 5 anos, filha do serralheiro honesto e trabalhador, vítima, como quase todos, de preconceitos e racismo)? A ausência de toque, de contacto físico: de encontrões, de raspões nos passeios, do roçar dos corpos humanos desconhecidos e anónimos em espaços diminutos como são as grandes urbes modernas. Em Los Angeles, todos se protegem, como diz o polícia negro, logo no início do filme, por detrás do vidro e do metal. Dos edifícios e dos carros. E, sobretudo, por detrás do vidro e do metal da incompreensão e dos preconceitos sobre os outros. O tema do racismo é óbvio; mas também se abre espaço, por exemplo, para se pensarem as mentiras do politicamente correcto (personagem do procurador) ou a raiva e o desapontamento conjugais (relação entre o realizador televisivo e a mulher, depois do encontro nocturno com os polícias brancos), etc. De qualquer modo, o mais interessante no filme são a sua estrutura (personagens que não se conhecem e se cruzam nas ruas e descampados da cidade, salvando-se e destruindo-se mutuamente sem saberem muito bem porquê) e o facto da mesma colocar cada uma das personagens, de forma um pouco aleatória, em situações ora de domínio e humilhação de outros, ora em situação de serem dominadas e humilhadas; ora de ódio em relação ao outro, ora de disponibilidade para o ajudar. Exemplos? Primeiro: o polícia racista (magnífico Matt Dilon) salva da morte a mulher que na noite anterior humilhara em frente ao marido; segundo: o polícia branco, bom e justo, que mata o rapaz negro a quem dá boleia na noite gélida, julgando-o, naquele momento erradamente, um perigoso delinquente. Neste sentido, o filme é, ao mesmo tempo, muito familiar e completamente surpreendente para o espectador, que nunca pode dar por garantido o passo seguinte de qualquer personagem. Por isso há quem morra ou quem sofra no hospital; mas há também quem redescubra o amor (o casal do realizador) ou a verdadeira amizade para além das diferenças raciais e sociais (a surpresa de ver Sandra Bullock como uma mulher frustrada e agressiva que, só depois da sua queda - crash -, compreende quem é a sua "melhor amiga"), sendo que o filme não cede a um qualquer happy end para recompor o caos. Pelo contrário, o que as imagens finais sugerem (a neve, a cidade e os seus milhões de luzes e habitantes) é que as colisões continuam sem parar. Quer dizer: os estrépitos, os estampidos, os estrondos, a destruição, a ruína, a bancarrota, as quedas... Tudo isso criando sempre algo de novo: energias, encontros, amor, ódio, criativade, desilusões, sonhos, sobrevivência. Vida. Como uma fogueira gigantesca no meio da noite escura e gelada.
7.7.06
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2 comentários:
Bela leitura de um grande filme.
ainda bem q já o viste, é de facto um grande filme ...
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