26.7.06

Poeira Mágica Para os Olhos!


1) Para quem, como eu, sofre de paixão assolapada por westerns e (alguma) banda desenhada, o recente lançamento, pela Asa, de Dust, o 28º volume das aventuras do Tenente (agora Mister) Blueberry, é uma mais do que excelente notícia. Com este álbum, que consagra a passagem da personagem de Charlier e de Giraud da extinta Meribérica/Liber para a editora do Porto, fecha-se o “ciclo de Tombstone”, iniciado, na edição portuguesa, com a publicação de Mister Blueberry, em 1996, volume já da total responsabilidade de Giraud (texto e desenho), pois Charlier falecera, entretanto, em 1989. No que diz respeito ao mercado português, seguiram-se depois Sombras Sobre Tombstone (1999), Geronimo, o Apache (2000) e OK Corral (2003), 4 álbuns antes do referido Dust, lançado no passado mês de Maio. Cinco álbuns que honram o passado de Blueberry e não ficam nada atrás da qualidade dos que, a partir dos anos 60, foram sendo criados pela dupla original de autores. Antes pelo contrário. Esta “série de Tombstone” proporciona ao leitor evidente prazer, tanto ao nível do desenvolvimento da intriga, como sobretudo ao nível plástico (traço e cores).


2) Estamos, portanto, de volta ao conhecido e velho Oeste. De certo modo, este é um dos primeiros argumentos a favor da obra: ela conduz-nos ao reconhecimento de uma paisagem e de um tempo que já nos é familiar, convocando conscientemente o imaginário de um tempo adolescente, povoado de cowboys aventureiros, “peles-vermelhas”, planícies poeirentas, saloons a abarrotar de jogadores de póquer e de cantoras dispostas a tudo. Neste sentido, a criação de Charlier e de Giraud há muito que perdeu o seu aspecto inovador (que teve, quando surgiu, nos idos de 60), assumindo claramente um pendor clássico ou classicizante, ainda que sem deixar de lado a dimensão humanista, romântica, rebelde e politicamente incorrecta do seu (anti-)herói. Por isso, muito para além deste, o herói verdadeiro deste ciclo (e, na verdade, do conjunto da obra) é a própria noção de Oeste ou de fronteira, isto é, de espaço sempre tendencialmente de liberdade, (em) aberto, sem limites definidos à partida, onde as personagens acabam por se revelar na sua condição de seres humanos imperfeitos, capazes da amizade, do amor, da confiança, etc., e igualmente, da crueldade, da traição e da mais absurda violência.
3) Voltemos ao herói suposto da história: o ex-oficial do exército, muitos anos depois da sua experiência da Guerra Civil Americana, o agora Mister Blueberry. Marcado pelo passado, é um homem envelhecido, com o cabelo a branquear, sem ilusões, mas com princípios, que passa o primeiro volume desta aventura sentado a jogar póquer e os segundo, terceiro e parte do quarto acamado, ferido, melancólico, sem intervenção de maior na história. Sim, os heróis já não são o que eram... Este estratagema serve, no fundo, para Giraud colocar em primeiro plano outros verdadeiros heróis da mitologia do Oeste americano, principalmente “Doc” Holliday, os irmãos Clanton, Wyatt Earp e o chefe índio Geronimo, personalidades históricas que se cruzam com as personagens de ficção criadas pelo desenhador e argumentista francês, num procedimento narrativo que, não sendo novo, não deixa de ser eficaz e estimulante. Cria-se, assim, um efeito de realismo que chega a configurar-se através de pormenores cultos e deliciosos, como o de colocar o acamado Blueberry a ler Moby Dick, o fabuloso romance de Herman Melville, publicado em 1851 e que foi, talvez o saibam, um monumental fracasso editorial...


4) Se o herói está, em grande parte do enredo desta série, fora de jogo, quem está, afinal, dentro dele? Como acima sugeri, os grandes protagonistas são, a meu ver, dois: por um lado, a paisagem humana; por outro, a paisagem natural. Temos aqui, como em qualquer western (e, claro, John Ford e a sua A Paixão dos Fortes deve ter sido uma das obras inspiradoras de Giraud...), os homens duros e implacáveis da lei & da ordem, os batoteiros, os cidadãos anónimos e os fanáticos da Liga das Virtudes Americanas, os bandidos sem escrúpulos, os políticos sem coerência, os banqueiros e juízes corruptos, os jornalistas ingénuos, ou preconceituosos, os índios vítimas de racismo e de total intolerância, as mulheres sensuais e inteligentes, capazes de sobreviver, apesar de tudo, no meio de tantos homens vorazes... Em suma, um retrato de uma sociedade em construção, simbolizada pela cidade de Tombstone, entre o selvagem e o civilizado, à procura dos seus equilíbrios, que se move, basicamente, de acordo com os princípios da sobrevivência (do direito do mais forte em impor a sua lei, quase sempre de revólver em punho) e do desejo de riqueza (ouro & dólares) e poder. Uma imagem da América, portanto. Do passado. E do presente? Cabe, aqui, notar que mesmo os defensores da ordem social e representantes da lei são terrivelmente violentos, capazes de massacrar quem se atrever a desafiá-los... Num outro plano, temos ainda o lugar e a visão dos índios, um aspecto particularmente interessante. Porque revelador das ambiguidades do olhar de (do branco) sobre esses outros de “pele-vermelha” que, objectos óbvios de racismo e de xenofobia, são as vítimas e os bodes expiatórios ideais para todos os males e crimes que a civilização branca não pode aceitar como seus. É neste ponto que o Blueberry (e o Wyatt Earp...) de Giraud/Charlier confirma, mais uma vez, a sua visão humanista, justa e tolerante do Outro, vendo Geronimo e os seus índios como homens, ainda que diferentes, e não como monstros selvagens (facto sublinhado, por contraste, pelo verdadeiro monstro que é a personagem de Johnny Ringo, o serial killer que semeia crimes e terror pela cidade).

5) Mas, para além da paisagem humana, temos a paisagem natural, sobretudo o espaço aberto: esse imenso espaço (real e imaginário) americano. E é talvez neste ponto que a herança e a influência do cinema fordiano se tornam, aqui, mais evidentes e presentes. O traço de Giraud fixa, pois, em cores quentes e duras, com grande e rigoroso pormenor, a majestosa paisagem do Far West (e todos pensamos em Monument Valley...), uma paisagem que molda o carácter das personagens com o seu próprio carácter indomável. Céu azul e cinzento. Terra castanha, vermelha e amarela. A perder de vista. Poeira. Calor. Ravinas & cactos. Espaço que garante a liberdade (perdida) a homens e aos seus belos animais de estimação, os cavalos, sempre desenhados com elegância. São estes espaços amplos, feitos de dureza, rudeza e beleza, que penetram as almas das personagens, tal como acontece em A Desaparecida ou em O Homem Que Matou Liberty Valance. Evidentemente, um dos pontos (mais) fortes, em termos plásticos, de toda a obra de Giraud e deste “ciclo” em particular.
6) Muitos outros tópicos poderiam ser apresentados e desenvolvidos com mais tempo. Por exemplo:
a) o encaixe narrativo, com a sobreposição das três histórias que se cruzam e desembocam em Dust: 1) a história real/lendária do duelo no OK Corral; 2) a história de Blueberry e Geronimo no passado e 3) a história de Blueberry e Geronimo no presente);
b) o conflito entre o olhar realista e cru, representado pelo jovem aprendiz de jornalista de Boston, Billy, e a visão idealista, politicamente correcta e literária (quer dizer, cor-de-rosa, censurada) da violência e da barbárie humanas, por parte do seu “patrono”, o gorducho Campbell. Diz, por exemplo, este último: “Não é possível omitir todas essas alusões ao consumo de bebidas alcoólicas?!...” Responde o primeiro: “Mas... bloody hell!... Trata-se da estrita verdade histórica!...”;
c) o humor sempre presente, que atenua a dimensão mais sombria e negativa dos factos narrados (o referido Billy faz lembrar, por exemplo, a personagem de William Blake, no Dead Man de Jim Jarmusch: alguém que parece estar sempre a mais, mas acaba por se apropriar das cenas...);
d) o permanente processo de “morte” e “ressurreição” do nosso herói crepuscular, que passa toda a série a jogar uma espécie de jogo não declarado do gato e do rato com o cangalheiro da cidade (alguém diz, a propósito, em certo momento, que “Tombstone, como o nome indica, é uma cidade que morre”...);
e) a mulher e o modo como ela é caracterizada, simultaneamente símbolo do desejo e da sensualidade mas também da pureza, da coragem e da capacidade de entrega e sacrifício (o anjo da guarda do Blueberry ferido, Dorée Malone) ou, em sentido inverso, a mulher manipuladora e má representada pela matriarca dos Clanton.
Tópicos que talvez possam vir a ser retomados numa futura ocasião. Quem sabe?

(Henry Fonda/Wyatt Earp, em A Paixão dos Fortes/My Darling Clementine (1946), de John Ford; pormenor de Monument Valley ao fundo, em segundo plano)
7) Finalmente, dizer que este “ciclo de Tombstone” de Giraud é excelente mas também tem as suas falhas, sobretudo ao nível do argumento. Dois exemplos apenas, relativos ao final da intriga: o banqueiro criminoso que foge com todo o dinheiro da cidade sem que alguém se preocupe em mover-lhe a mais que justificada (?) perseguição e o facto do jovem Boone, depois de jurar que matará Blueberry por vingança, ter escapado da prisão e permanecer em liberdade... tal facto não parece incomodar ninguém, nem o próprio visado, talvez aqui excessivamente cool... Ou será que estas são “linhas” soltas que se retomarão em próximo episódio? A ver vamos. Esperemos que a Asa nos permita que continuemos a acompanhar as épicas e picarescas aventuras de Mister Mike Steve Blueberry.

(Uma nota final que é um pedido, PB: será possível, através do teu contacto a norte, encontrar os volumes que faltam na minha colecção blueberryana? São eles: Nariz Partido; A Longa Marcha; A Última Cartada; O Fim da Pista e Os Demónios do Missouri... Vê lá o que podes fazer por este teu amigo cronista!)...

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