23.3.06

Dos malefícios da literatura (segundo K., numa versão de 2005)

A leitura era um ritual que avançava por fases. Primeiro, procurava os textos, ou estes vinham ao seu encontro, como por acaso. Encontrava-os em bibliotecas públicas, em casas de amigos ou, o que era mais raro, em alfarrabistas, com os quais negociava horas a fio até alcançar o preço justo para ambas as partes. Organizada a antologia, era tempo de colocar todos esses textos em recipiente adequado. Depois, pegava-lhes fogo, e deixava que este fizesse o seu trabalho até não restar mais que cinza negra do que fora tinta e papel. De seguida, com um cilindro apropriado, esmagava as cinzas até se converterem num pó tão fino que era forçoso fechar portas e janelas não se desse o caso de alguma corrente de ar, por mínima que fosse, o espalhasse como poeira celeste. Por fim, com recurso a algumas gotas de limão, uma colher, um isqueiro, garrote e seringa, injectava o produto nas veias. O prazer da leitura revelava-se tão maravilhoso como imediato. E era sempre diverso. Fechava os olhos para o gozar, corpo e espírito completamente eriçados. Nesses instantes, tensos, intransmissíveis, as imagens corriam misturadas com o seu sangue quente. E era vulgar encontrá-lo nas ruas a dançar convulsamente enquanto dos seus lábios, tomados pela alucinação, jorravam as elegias perfeitas de certos clássicos ou os parágrafos encantatórios de alguns contemporâneos, aparentemente destinados a esse fim. No entanto, concluída a leitura, a ressaca era tremenda. O retorno à realidade causava-lhe dores terríveis, facto que confirma, uma vez mais, que viver a vida é bem pior do que imaginá-la em palavras.

1 comentário:

j disse...

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