1. Reincido. Mas é que isto anda tudo ligado. Meto-me em trabalhos desnecessários, a fazer leituras em inglês (e o Saramago ali, à espera de ser relido!) e descubro um poema do Roger McGough no dia em que vejo mais um episódio da série documental de António Barreto e Joana Pontes, Portugal, um Retrato Social. E que vejo eu no programa de AB e JP? Entre muitas outras coisas, isto: um depoimento de um médico a trabalhar há muitos anos no distrito de Setúbal e a lembrar, a quem se esqueceu, ou quer esquecer, a crise dos anos 80 aqui vivida, o desemprego, os salários em atraso, a fome, o desespero, os suicídios. Palavras desse ilustre profissional de saúde, podem confirmar, se não viram. Pois, e isto que tem que ver com os poemas do McGough, que nunca deve ter posto os pés em Setúbal nos anos 80 (nem nos 90, nem nestes de agora, nem no Vale do Ave, nem por aí fora)? Eu acho que tem alguma coisa a ver. Talvez queiram conferir. Diz assim:
Fired with Enthusiasm*
This morning
the boss
came into work
bursting
with enthusiasm
and fired everybody.
2. Vou traduzir este poema, mas não pretendo maçar-vos com as minhas muito íntimas questões sobre a tradução de poesia (podes saltar esta parte, J.). Só preciso de dizer algumas coisas. Primeiro que tudo, evidenciar que a energia significativa desta micro-narrativa poética se vai concentrando até atingir o clímax do último verso: "fired everybody". Depois, notar que este clímax é o nó górdio da ambiguidade poética do texto, porque "fired" pode, em inglês, significar, pelo menos, despediu e disparou. Por conseguinte, deixar claro que a eliminação de qualquer uma destas opções implica reduzir drasticamente o alcance estético (poético) e ético (político) do texto. Neste sentido, atraiçoar sem remédio o poema. Traduttore traditore sempre, claro. Mas o menos possível. Por isso proponho a manutenção do duplo sentido, inscrevendo no título e no último verso, isto é, nos topos inicial e final do texto, cada uma das interpretações permitidas. Quanto à opção de reforçar a noção de "disparo" ou "fazer fogo" sobre "toda a gente", colocando-a a fechar o poema, ela decorre não só da decisão de traduzir "bursting" como "a arder" (o fogo como elemento de ligação lógica e imagética), como ainda da constatação de que o último verso se separa do corpo estrófico anterior, aparecendo isolado. Talvez isso possa ser interpretado como uma estratégia do poeta: sugerir ao leitor que o último verso tem um alcance distinto do que atrás se disse (circunscrito ao mundo do trabalho e das relações laborais). Um alcance mais vasto: a ideia de que o mundo do trabalho espelha afinal, de forma enviesada, a violência do mundo contemporâneo. Leia-se: da sociedade capitalista contemporânea e das suas relações (des) reguladas pelo lucro a qualquer preço. "A qualquer preço?", esta poderia ser a pergunta do poeta.
3. E tudo por causa de uma simples (e má?, errada?) tradução:Despedidos com entusiasmo
Esta manhã
o patrão
veio para o trabalho
a arder
de entusiasmo
e disparou sobre toda a gente.
É que, em alguns casos, despedimento e desespero podem significar a mesma coisa. Parece que aconteceu aqui em Setúbal (já não acontece algures?) É como colocar uma arma de fogo nas mãos de alguns que, não sabendo o que fazer com ela, a viram contra si próprios. Mas isto não deve ter nada a ver com a poesia. A poesia é beleza e só devia falar da primavera e do amor. Então para quê isto? Tem algum jeito? Vejam só se podemos chamar poema a uma coisa destas:
Conservative Government Unemployment Figures*
Conservative Government.
Unemployment?
Figures.
Nem me atrevo a traduzir: ainda começo a confundir conservador com social-democrata, social-democrata com socialista, and so on. E nós, afinal, não estamos em Manchester. Vou mas é dedicar-me à prosa do Saramago. É portuguesa e castiça. E não precisa de tradução. E amanhã é dia de trabalho. E a minha política é o trabalho. And so on.
*in The State of Poetry, Roger McGough, Peguin Books, London, 2005.
Conservative Government Unemployment Figures*
Conservative Government.
Unemployment?
Figures.
Nem me atrevo a traduzir: ainda começo a confundir conservador com social-democrata, social-democrata com socialista, and so on. E nós, afinal, não estamos em Manchester. Vou mas é dedicar-me à prosa do Saramago. É portuguesa e castiça. E não precisa de tradução. E amanhã é dia de trabalho. E a minha política é o trabalho. And so on.
*in The State of Poetry, Roger McGough, Peguin Books, London, 2005.
2 comentários:
Não maças nada. Muitissimo interessante, como já te tinha dito. E sim, esta poesia faz muito sentido. Todo o sentido.
Nota: gato traduttore escondido, com o rabo de fora? ;) Devias ganhar balanço, creio mesmo que estás a fazê-lo. Ainda bem! Que não te pesem os dicionários, agora mais libertos de pó...
Isto anda tudo ligado...
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