Foi o lugar da descoberta do prazer de roubar fruta. De tirar a casca às laranjas, limpar a pele das peras, e devorar tudo, com o sumo a escorrer pelo queixo abaixo. Foi o lugar das primeiras fugas, ao som de tiros de caçadeira para o ar ("Ah, filhos da puta, se vos apanho dou-vos uma carga de porrada!"), pernas para que vos quero. Foi o lugar das pedradas aos pássaros, das correrias, dos esconderijos, da crueldade, das nódoas negras por causa dos cromos da bola. Das disputas sobre quem lança mais alto, mais longe, mais forte o jacto de urina. Das cicatrizes inesquecíveis, dos primeiros cigarros, das primeiras bebedeiras, das primeiras ganzas, desilusões & dissidências. A casa já estava em ruínas, vai para anos. Hoje começaram as terraplanagens: alisar o que era acidentado, esventrar, entubar, parece que este pedaço de terra ficou, de súbito, doente. Onde havia hortas e pomares, haverá ruas, passeios, carros. E prédios, mais prédios. E haverá pessoas nesses prédios. Chegarão a casa, ligarão a televisão ou o computador. Farão o jantar, amor se for dia disso, dormirão bem ou mal. É assim, será assim: os alicerces dos prédios vão assentar sobre a terra. E os ossos da nossa inocência ficarão ainda mais soterrados debaixo do peso do betão.
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9 comentários:
Quanta nostalgia, LP! Não sei de que Quinta falas, mas há anos que os sítios por onde cresci (entre Vale de Milhaços e Corroios)se apresentaram "doentes", assim como tu descreves hoje. Gostei particularmente de te ler hoje e teria preferido mil vezes dizer-te isto à mesa do café (o que não diminuiria a tristeza de ver desaparecer paisagens amadas e vividas)do que através do PC, mas também nós, os nostálgicos, "vivemos" através dos computadores. Boa noite :)
é isso...
olha, não tenho o teu mail mas preciso de te perguntar: posso postar o "meu" Tundra lá na linha nos "livros que me pertencem"?
Creio entender-te. Como sabes, o lugar onde vivi algumas experiências parecidas é hoje um imenso parque de estacionamento e zona de acessos para a estação de comboios de Corroios. Era um pequeno monte com pinhal, debruçado sobre a auto-estrada e, cá em baixo, semeado de pequenas hortas. Cheguei a cuspir para as mãos, experimentado a enxada com o meu pai, numa breve experiência agrícola. Lugar irreconhecível, quando comparado com as fotografias da minha memória. Chamam-lhe progresso. Pouca terra, pouca terra.
Também tenho um "Tundra", muito estimado :-)
LP, muito bonito o teu texto. Nunca mais voltei a Luanda-lugar em que nasci e cresci- e tenho tanto desejo como medo. O medo de ver que máquinas como as que descreves ou outras tenham tornado inexistentes a mangueira e os mamoeiros do meu quintal. Acresce que na saída à pressa não tenho um único objecto da minha infância, só a memória. Ler a tua nostalgia aconchegou a minha.
~CC~
e como havemos de fazer: corto o autor na capa ou simplesmente não faço a relação? e depois apago este comment e tu apagas o teu na linha
Por falar em "Tundra" ... não sei porquê mas tenho dois ... Vendo um exemplar por 3 milhões ...
M., talvez seja suficiente "tapar" o nome do autor.
PB, saíste-me cá um "vendido"!
Passou para 6 milhões! ;-)
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