6.8.06

Névoa

Há, nos Diários da Bósnia, de Joaquim Sapinho, um pudor que penso entender, no retrato de um corpo ferido. Os Diários resultam de duas viagens a Sarajevo e outras localidades, a primeira em 96, pouco depois do fim do cerco, e a segunda em 98. Há um ritmo na contemplação, na procura dos sentidos de cada imagem, paisagem, rosto, que nos deixa a pensar sobre os efeitos de uma guerra como aquela que implodiu os balcãs. É um documentário muito pessoal mas também muito oportuno (demorou 10 anos a concluir), no momento em que somos bombardeados de manhã à noite com uma outra guerra, quase em directo, traduzida de forma fria em nomes de mapas, estatísticas de vítimas, esquissos de diplomacia. Há um silêncio feito de caliça, fumo e cinzas, depois do choro e dos gritos dos telejornais, que dificilmente cabe nos telejornais, nos radiojornais e nos jornais de papel.

Há um manto espesso de neve que não nos deve fazer esquecer as árvores e as ruínas. Há uma névoa dormente. Há mulheres muçulmanas, rezando e cantando e depois puxando uma fumaça de um cigarro, com os lábios pintados e os cabelos escondidos sob um lenço. Há o homem que sente urgência em partilhar a história de como destruiram a aldeia vizinha – vamos pelo túnel, até às ruínas, com as ruínas de um homem. Há restos de um teleférico sem passageiros que ainda mexe, no local dos Jogos Olímpicos de Inverno de 84, e que hoje é uma reserva de sérvios para quem a guerra “ainda continua”. Há uma casa que parece uma caveira e uma praga de acne de chumbo, com as paredes carregadas de buracos e rasgões. Há poucas palavras, para o bem e para o mal.

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