Não sou bem estrábico, tenho apenas um olho preguiçoso – apesar do meu amigo PB me retratar, desde sempre, como um Sartre elevado ao cubismo. Eu explico. Quando estou cansado ou quando fixo o olhar, para ler ou ver televisão, o olho direito arruma-se para o lado de fora e deixa o esquerdo fazer o trabalho principal. Bem sinto o constrangimento de algumas pessoas quando tentam perceber para onde estou a olhar quando, evidentemente, estou a olhar para elas. Nunca peço desculpa. Acho que não devo. Também há pessoas com o nariz torto ou umas orelhas anormalmente assimétricas e eu não me ponho com dichotes. Se têm alguma dúvida, perguntem. (Já agora, uma dica: nestes casos, apontem o olhar para o topo do nariz, mesmo entre os olhos. Nunca falha!)
Retomando. Não tenho visão binocular. Quer isto dizer que, ao contrário da maioria das pessoas, os meus olhos não conseguem formar uma imagem única. Não dava para piloto, até porque também sou proprietário de um formidável astigmatismo, que tem espantado gerações sucessivas de optometristas. Mas também não queria. Às vezes, sonho com um passeio de asa delta, mas não passa disso. Os médicos já me disseram que o problema podia ter sido corrigido quando era miúdo, mas agora tenho que viver assim. Não é nada de grave. Nunca me passou pela cabeça pedir contas aos meus pais. Agora que penso nisso, aquela fantasia da minha mãe querer mascarar-me de Camões, pelo Carnaval, podia ter ajudado. Por causa da pala, estão a ver? O problema era se me tapavam o olho direito, em vez do esquerdo. Mas eu, de Camões? Naaa! Não era por causa dos versos. Era a ideia de que os collants me fariam comichão. Só experimentei muitos anos mais tarde, daqueles para o frio polar. Bem quentinhos, por sinal.
Adiante. Resulta, de tudo isto, uma dúvida: quando o meu olho esquerdo está a processar a informação de um livro, de um filme ou da cara de um interlocutor, o que está a fazer o olho direito? Como não está fechado, presumo que também esteja a recolher dados – formas, cores, movimentos. Chegámos ao ponto. Imaginem que estou a ler na varanda: vou seguindo a história com o olho esquerdo, enquanto o direito vigia a vizinha da frente, que pendura a roupa no estendal. Poderá dar-se o caso de, uns anos depois, a minha memória de um belo romance de cavalaria incluir a surpreendente personagem de uma donzela com um telemóvel entalado entre a orelha e o ombro, enquanto vai espetando molas no equipamento do Benfica que o marido usa aos sábados, no futebol de salão com os amigos? Outro exemplo. Estou na sala, com o meu olho esquerdo a rever “A Mosca”, do David Cronenberg. O que faz o direito? Vai acompanhando o esvoaçar de uma verdadeira mosca, de quadro para quadro, da ombreira para a maçaneta da porta, e por aí fora. Será correcto admitir que este facto pode aumentar a intensidade da memória que guardarei daquele filme? É que, parecendo que não, pormenores destes podem marcar a vida de uma pessoa.
Ah, pobres olhos! Já vos dou descanso, depois deste parágrafo. Vou levar à letra o conselho dos oftalmologistas. “Para repousar a vista, procure o infinito, durante alguns instantes e, depois, rode os olhos em todas as direcções. É uma boa ginástica!”. Muito bem. Cá vou eu, a revirar os olhos. Um para cada lado.
10 comentários:
Meu caro J, é de ANTOLOGIA este teu texto! FANTÁSTICO!
GRANDE ABRAÇO!
A mim, a "voyeuse" de serviço, fez-me rir! Eu que cheguei de ver "Paris je t'aime" com as pernas bambas e o coração aos saltos, não por causa da película mas porque, por um triz, não me enfiaram a trazeira do meu carro para dentro! A chuva faz destas partidas!
Acho que, quando te conhecer ao vivo e a cores, me vou desmanchar a rir (para além de corar como um pimento,como a C já te deve ter prevenido!).
Um bem-haja pelos teus (vossos - há que fazer justiça aos outros dois companheiros!)textos!
AC
;o)
ao ler-te fez-se-me luz sobre mim própria: tenho o mesmo problema (ou será vantagem?), mas com um ouvido (também o direito, tímpano errante enquanto o esquerdo se concentra). não ouço em stereo e misturo constantemente as diferentes informações que me chegam por cada ouvido.
a)
Meu caro, estás a fazer-me olhinhos para eu te perdoar os mais de vinte anos de caricaturas mordazes? Estás perdoado, fica descansado.
b)
Cara AC, eu também ruborizo amiúde, sabes? Dizem que faz bem à saúde: parece que previne o bicho, nas maçãs do rosto.
c)
.-)
d)
"O Tímpano Errante" dava um bom nome para um programa de rádio. Se bem percebi o teu caso, terás uma espécie de "dolby surround 5.1" permanente, ou coisa que o valha.
Pode ser uma vantagem, de facto. ;-)
Isto quase parece um guião dos Monty Python ihihihihihihihihihihihi .... continuem por favor ;-)
Monty Python? Escuta, amigo. Isto são assuntos sérios - os meus olhos, os ouvidos da M. Parece-te bonito, brincar com estas questões?
Por isso mesmo! LOL foi o q os MP sempre fizeram ... gozar com tudo ;-)
primeiro imaginei a cara do J (que nunca vi mais gorda) com um olho excêntrico; depois do post do falar sozinho, o olho já ia tipo antena, fora da silhueta.
qualquer coisa errante daria sempre um excelente nome de programa de rádio.
dÔôb dÔÔb d_ _b d..b
d••b d00b d. .b d@@b
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