30.1.07

Bicicletas na Poesia Portuguesa Contemporânea 3


A primeira das "Cinco Canções Lacunares", datadas de 1965-68, que Herberto Helder coloca entre "Húmus" e "Os Brancos Arquipélagos" na edição de Poesia Toda que tenho (de 1990) é "Bicicleta" e começa assim:
"Lá vai a bicicleta do poeta em direcção
ao símbolo, por um dia de verão
exemplar. De pulmões às costas e bico
no ar, o poeta pernalta dá à pata
nos pedais. (...)"

Depois, mais adiante no caminho, continua:

"Os êmbolos do coração ao ritmo dos pedais --
lá vai o poeta em direcção aos seus
sinais. Dá à pata
como os outros animais."(p.295)

Esta visão do poeta como animal (bicho vivo, mágico, pernalta) é um poema de 5 estrofes (que oscilam entre os 11 e os 9 versos), com algumas rimas (parte delas interiores), em verso livre (sem métrica regular) mas controlado. Estas características formais equilibradas (o equilíbrio necessário a evitar a queda) podem ser pensadas em contraste com a viagem simbólica da própria "bicicleta do poeta" ao coração das trevas que é a vida e que é proposta pelo/no poema: "a vida é para sempre tenebrosa", dizem-nos os versos 21 e 22, praticamente a meio do texto. Esta viagem é, portanto, metáfora e descoberta da vida, dessa "puta de vida subdesenvolvida"(v.25) que nos querem impor e que é imperioso transfigurar para poder ser realmente livre e verdadeira. Assim se revela a improvável e decisiva responsabilidade do poema (essa "bicicleta do poeta") -- por ele aceitar aceder ao amor (à "confusão do amor", isto é, à con-fusão do amor) e à confrontação simbólica, amorosa, com a morte ("Morte é transfiguração, / pela imagem de uma rosa" vv.34/35). O rolar dos pneus nos caminhos não cessa, por isso, de nos questionar: como viver a vida na sua inexorável relação com a morte? Talvez uma resposta possível, embora precária, possa ser: criando, escrevendo, amando no máximo das nossas possibilidades pessoais. Talvez assim possamos resgatar magicamente alguma parte desta "vida (...) para sempre tenebrosa". A caminho de "um verão interior".

1 comentário:

j disse...

Estou a gostar destas tuas pedaladas. E o desenho, tb é teu ou pediste ao nosso amigo para tirar as canetas da gaveta? ;-)