Em Electronicolírica, livro de 1964, depois re-intitulado A Máquina Lírica (sigo a edição de Poesia Toda, Assírio & Alvim, de 1990, entretanto re-intitulada E o Poema Contínuo), Herberto Helder dá a lume o primeiro poema que conheço em que o leit-motif da bicicleta tem um valor significativo determinante (haverá outro, mais tarde, "Bicicleta", de Cinco Canções Lacunares). É o segundo poema desse livro-sequência-capítulo da obra poética de Herberto e começa assim:
"A bicicleta pela lua dentro -- mãe, mãe --
ouvi dizer a toda a neve." (p.251)
A bicicleta é o dínamo, o elemento desencadeador do movimento do poema como proposta de transfiguração do real - a bicicleta já não terrena, mas aérea, voadora, lunar (spielberguiano como sou, não deixo de ligar esta imagem à de Elliott e de E.T. a cruzarem magicamente a lua na sua fuga em bicicleta no filme E.T. - O Extraterrestre...). Bicicletas que voam e toda a neve a chamar a "mãe", imagens da poesia como campo poderoso e mágico, produtor de encantamento e espanto. Aliás, um pouco mais à frente no poema, o sujeito lírico passa a ser a "mãe" que impele, como musa ambígua, o filho para o canto da poesia:
"Canta nesse espanto -- meu filho -- os satélites
sonham pela lua dentro na sua bicicleta."(p.251)
Satélites de bicicleta pela lua dentro: a personificação remete directamente para o facto de em 1957 (ou seja, sete anos antes da 1ª edição do poema em Electronicolírica) ter sido lançado para o espaço, com sucesso, o primeiro satélite humano: o famoso Sputnik. Sintomaticamente, o terceiro verso do poema na sua versão de 64 era: "As árvores crescem nos satélites russos"; este adjectivo foi eliminado em Poesia Toda, pelo menos na edição que eu tenho. O verso ficou: "As árvores crescem nos satélites." Ganhou a Poesia, perdeu em sabor a História. Mas deixemos os satélites e voltemos à bicicleta de Herberto. Ela volta a reaparecer no poema, ligada à memória:
"Avança memória, com a tua bicicleta."
Ora fazer avançar a memória é, mais uma vez, algo que escapa ao quadro normal da percepção quotidiana das coisas, traço que caracteriza parte do processamento poético do autor de Os Passos em Volta: a memória deixa de ser um recuo, uma revisitação do passado, para se afirmar movimento para diante, descoberta do novo e do desconhecido: "é a neve avançando na sua bicicleta."(p.252) Para além de resquícios surrealistas, esta metáfora mostra a máquina lírica sempre em movimento para a frente, cruzando tempos e anulando as fronteiras entre passado, presente e futuro. Assim, se no fim do poema a bicicleta surge associada à imagem da morte ("a bicicleta / vergava ao peso desse grande atum negro"), também é verdade que a morte alimenta de vida os vivos, faz "tanta força", obrigando-os a pedalar (a viver, a criar, a escrever) sem interrupção:
"O teu nome negro com tanta força --
minha mãe.
(...)
Ao contrário tão morta -- minha mãe --
com tanta força, e nunca
-- mãe -- nunca mais acabava pelo tempo fora."(pp.253-254)
De bicicleta, pela página fora.
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