30.10.06

As pequenas luzes

Da janela do quarto de F., olhando à esquerda, posso ver as duas pequenas luzes que os vizinhos do prédio do lado deixam acesas durante a noite, todas as noites, na sua varanda do segundo andar. Eu desço o estore para F. se deitar e dormir e vejo-as, todas as noites, pequenas luzes tremeluzentes a oscilar na noite. De manhã, F. acorda e eu subo o estore: lá estão elas, protegidas, no interior das duas conchas transparentes que as defendem dos ventos e das chuvas. Todas as noites, toda a noite, ontem, hoje, agora. Amanhã.

Pequenos Prazeres

Outono. O belo chuvisco das folhas lembra-nos que a seiva há-de trazer rebentos e outros deslumbramentos. Sento-me aqui, por instantes, na companhia das árvores e da flauta do vento, decifrando ensinamentos antigos.

29.10.06

O "Blogue"

O "Blogue" já teve melhores dias, não ?
Há um certo "desentusiasmo" ...
Eu pelo menos não ando nada entusiasmado com isto ...

24.10.06

Dia de Psi

Tindersticks - Can We Start Again

Do You Remember?

Tindersticks-Travelling Light



Dia de psi. O céu cinza amarelado, como os dedos de um velho fumador. Agora, mais escuro. Um desejo de procurar o sol, reconquistar o sol.

22.10.06

Antes a Morte

“Dá vontade de rir: uma cidade em que até o coveiro se mata.” Rui Cardoso Martins leva-nos para dentro da estatística, que dita que é no imenso sul que há mais gente de cordas e venenos em riste. Escrito com uma granada no bolso, E Se Eu Gostasse Muito De Morrer (edição Dom Quixote) lê-se num abrir e fechar de olhos - a expressão ganha aqui outro valor, claro. A prosa é enxuta, directa à carótida, numa dança de vozes e alcunhas de infância, piscadelas de olho à actualidade, um punho atirado às misérias da História do império colonial, com as duas chaminés da fábrica da cortiça em fundo. Por uma sai fumo negro, pela outra, branco.

Uns dias depois do livro, sem premeditação, um filme, no DocLisboa: Exit – The Right to Die levou dois anos a fazer, explicará depois, numa conversa com o público, o suiço Fernand Melgar. Seguimos os passos dos voluntários de uma associação que ajuda pessoas com doenças graves, que querem pôr um ponto final no sofrimento. Trata-se de um filme sobre a vida, previne antes da projecção, o realizador. Quando as luzes se acendem, no final, há um denso silêncio que se arrasta e é quase em silêncio que a sala se esvazia.

Perto do fim, acompanhamos os preparativos para a morte de uma mulher, realizados pelo presidente da Exit. Dois líquidos, misturados num copo, que é preciso beber até à última gota. “Se beber até à última gota, depois não poderei fazer mais nada”, explica o voluntário, médico de profissão, depois de ter perguntado, mais algumas vezes, se ela está mesmo determinada. Ajuda a mulher a erguer-se na cama e estende-lhe o copo. Ela despeja-o, sem hesitações. A câmara filma pelas costas da mulher, apanhando o olhar do voluntário e as lágrimas de uma amiga. Na parede em frente há um espelho. A seguir, a mulher vai deitar-se e adormecer. O voluntário sugeriu-lhe que pensasse numa recordação agradável, por exemplo nos pais, de quem tanto gostava.

No debate que se realizou depois da projecção, um espectador quis saber se a mulher dessa cena final se estava a ver ao espelho. O realizador respondeu que não sabia. O que ele sabia, antes de começar a filmar, é que queria filmar pouco “para não estar a escolher, na mesa de montagem, quais os casos que aproveitava e quais os que deixava de fora”. O que ele sabia, antes de começar a filmar, é que não queria registar o momento da morte de ninguém. Acabou por fazê-lo, uma única vez, aquela que vimos. Explica que sentiu necessidade. Um espectador disse entender, confessou que sentiu o alívio.

21.10.06

14.10.06

13.10.06

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11.10.06

Monóculo / Monólogo


Por momentos, consigo ver a lua, envolta num lençol de nuvens, através da vidraça do topo da janela. Depois, apaga a luz. Sigo-lhe o exemplo.

10.10.06

Lentes, Modos de Usar

A brincar, os teus filhos partem-te outra vez os óculos. A tua mulher sugere-te que experimentes lentes de contacto. Experimentas, e regressas a casa com as lentes colocadas sobre a água dos olhos. A tua mulher olha-te e diz-te que não te reconhece totalmente. Como se tu já não fosses tu de uma certa maneira. Como se fosses uma segunda pessoa a escrever na segunda pessoa. Tu. Eu?

O Mundo Em Expansão

Trocas os óculos por lentes de contacto e as pessoas parecem não reparar nisso. Mas tu notas que as coisas à tua frente ficam ligeiramente maiores. Por exemplo, os caracteres no écran. Ou as botas nos pés.

As Pessoas Conhecidas Que Encontramos Num Hospital

Os tios dos rapazes de quem fomos amigos. E que nos falam dos sobrinhos, ou das filhas dos sobrinhos, sem saberem que nos incompatibilizámos definitivamente com eles, por motivos que não conseguimos já determinar. Ou aquelas senhoras, agora muito velhinhas, que tomaram conta de nós no princípio de tudo. Enquanto os pais trabalhavam nas Siderurgias e as mães nas fábricas corticeiras, elas deram-nos o leitinho no biberão, mudaram-nos as fraldas, adormeceram-nos ao colo... Mas não nos reconhecem quando entramos, ao fim da tarde, nos quartos partilhados com outras velhinhas que não reconhecem os outros como nós que entram nos quartos para as visitar. Ninguém sabe muito bem o que dizer. E depois a visita acaba.

8.10.06

Comunidade de Leitores 3

"Donde é que vens, galdéria?"
"Da rua, Senhora."
"Às onze da noite, na rua?"
"A calçada não se derrete com o escuro."
"Ordinária. Cabra filha de cabra."
"E de cabrão, senhora."

Nuno Bragança, A noite e o riso (1969).

XIII: Teses Para Uma Teoria da Conspiração

Não são especulações, mas factos. A série vai já no 17º álbum, embora em Portugal só tenham sido publicados os primeiros nove, pela Meribérica/Liber. Comprei-os todos em duas vezes, no sítio do costume, a preços de saldo, resultado da extinção da editora (desconheço se outra chancela prosseguirá a edição dos restantes volumes; se tal não acontecer, é uma pena). Li, por estes dias, os primeiros cinco: O dia do sol negro; Para onde vai o índio...; Todas as lágrimas do inferno; SPADS; Alerta vermelho. Os autores não me são totalmente desconhecidos: William Vance, por exemplo, desenhou para Jean Giraud algumas histórias do Marshal Blueberry; Jean Van Hamme é, por sua vez, co-autor de Largo Winch e do excelente Western, desenhado por Rosinski. Créditos excelentes, confirmados nestas aventuras de homens e mulheres em fuga, políticos enlouquecidos pelo poder, manipulações, sonhos e armadilhas. Tão reais como a realidade.


Um homem dá à costa com um ferimento grave na cabeça. Recupera do ferimento mas perde por completo a memória de quem é, de onde vem, para onde vai. Descobre que há gente muito poderosa que o quer prender ou matar. Dizem-lhe, mostrando-lhe imagens de um filme como prova, que assassinou o 43º Presidente dos Estados Unidos da América, baleado "em plena rua durante uma visita oficial ao sul do país"... Em Dallas? Como muitas obras de ficção, esta BD parte de alguns factos verídicos para poder desenvolver as linhas mestras da sua enfabulação. Os elementos que os autores utilizam remetem, de imediato, o leitor para o caso Kennedy e as suas proliferantes teses de conspiração: assassínio do presidente; luta eleitoral entre o irmão deste, liberal e defensor de políticas progressistas e sociais, e o seu adversário, o vice-presidente, claramente manipulado por sectores militares e políticos de extrema-direita ("Temos de proteger a nossa economia ameaçada. Temos de reforçar o nosso potencial militar para assegurar a desfesa da nossa supremacia. A hora, meus amigos, não é de escolhas tímidas: sob pena de sermos esmagados, é preciso dominar!": estávamos em... 1987; lembram-se de Reagan?); atentado falhado contra o irmão do presidente assassinado; golpe de estado a partir do interior da Casa Branca para instauração de um regime ditatorial disfarçado de democracia ("O atentado que acaba de ter lugar só pôde realizar-se graças à cumplicidade das mais altas individualidades, General. Na qualidade de Ministro da Defesa e de amigo pessoal do Presidente (...), parece-me indispensável decretar a autoridade das forças armadas em todo o país, até ao total esclarecimento desta terrível conspiração. Alguém tem objecções a apresentar?", pergunta a sinistra personagem de Calvin Wax; Rumsfeld avant la lettre?!). O álbum onde se podem ler estas palavras é o último que li, Alerta vermelho, no fim do qual os conspiradores são desmascarados e vencidos. Pelo menos é o que acontece normalmente na ficção. E na realidade? Bom, isso já é outra história...

Tears Transforming

Banda sonora para um domingo. Será que todos os textos têm música, entrelinhas?

Tord Gustavsen Trio, The Ground, ECM, 2004

As Mãos do Pai (uma imagem e mil palavras)

para LP

“ – Você está a ver, meu filho, tanta beleza! Quero nascer mais vezes.” Gostava de escrever assim. Uma fotografia, por exemplo. Uma crónica num jornal. José Eduardo Agualusa sabe que é no detalhe que está a grande expressão da humanidade. Hoje escreve na Pública novas Fronteiras Perdidas, no olhar de uma fotografia intensa de Yannis Kontos, que podemos ver no CCB, até ao próximo dia 22.


“Ao meu pai roubaram-lhe as mãos. Nunca me disse como. Disse-me: um dia fui dormir, filho, havia a guerra. Quando acordei alguém me tinha levado as mãos”. O cronista-escritor junta palavras na palma do texto e leva-nos em viagem pelo imaginário de uma imagem, pela mão de um filho. “Ando pelas ruas e toda a gente tem as mãos do meu pai. Um dia, não duvido, vou encontrar alguém com umas belas mãos, de dedos longos, a palma honesta, meio amarelada, muito cheia de futuro, mas sem a linha da vida.”

Escrita a Dias

C. diz que tem uma colega (uma amiga?) que gosta de ler alguns textos deste blogue. A informação surge (e perde-se?) entre o cação, a carne com brócolos e dois tragos de Duas Quintas – que magnífico repasto! – , misturada com notas cinéfilas e o aperitivo de uma polémica sobre os atentados que não nos largam a retina (olha, mais um golo!). Porque gostamos do que lemos? Porque escrevemos, em letra miúda – corpo 12, no dealbar da puberdade –, o que escrevemos?... notas pessoais, impressões de viagens, estados de alma e letras de canções... Acaso notará a leitora algumas vírgulas fora do lugar e uma certa pose no centro desta e daquela frase? Conspiramos um novo lugar secreto, ao abrigo de olhares indiscretos mas, na verdade, sabemos que gostamos de ser lidos e observados no desenho que esboçamos dos dias andados. Porque queremos partilhar algo, talvez nem sempre muito nítido. Uma mnemónica acrobática, talvez.

Almoço Volante

Na mesa do lado está um homem, quarentas e muitos, a almoçar com os pais. Discutem a ementa, a mãe escolhe espada grelhado, pai e filho optam por dividir um cozido. No meio da sala, uma família paga a conta e encaminha-se para um automóvel estacionado em segunda fila, mesmo frente à porta do restaurante. O homem da mesa do lado levanta-se e sai. Um minuto depois, um novo automóvel estaciona em frente da porta, em segunda fila. O condutor entra no restaurante e senta-se na mesa do lado, servindo-se de mais enchidos e batata.

7.10.06

Sónia

O que é o transe? Uma angústia, uma intermitência, uma suspensão, um pesadelo com as pálpebras puxadas para cima por dedos rapaces. O gelo.

O gelo estala. O corpo é atirado para dentro de uma banheira cheia de água. O frio. Umas algemas numa estrada desconhecida. Podes fugir quando sentires que vai ser possível. Talvez um louco te abra a porta. Álcool.

Uma bola de espelhos rodopia reflexos numa parede. Agora tens batom. Agora está esborratado. Esbofeteada. Água. Sede. Os lábios gretados. Suor. Podes fugir mas não agora. Esperma. Como se a bola de espelhos rodopiasse dentro da tua cabeça enquanto os homens procuram arrancar-te as pétalas, com (indiferente) delicadeza.

Que língua é esta? Como te chamas? O Mal não tem tradução? Diz. Água? Dinheiro. Escapa, corre!

Vários homens e um cão a arfar. Um castigo. Para aprenderes a não fugir porque não és dona do teu corpo nem do teu destino. Um contentor. Ainda te lembras do teu nome? Sim. Talvez consigas escapar mas se calhar vais ter, para sempre, uma bola de espelhos a rodopiar dentro da tua cabeça.

“Tanto eu como a Ana Moreira sabiámos que estávamos a falar de uma coisa maior do que nós próprias”

Teresa Villaverde, realizadora de “Transe, Expresso, 30 de Setembro 2006

6.10.06

Os gatos estão tristes ... e não só ... *














Hoje morreu o Gris.
O gato mais velho da R. e do P.
Era um gatão.
Foi de certeza para o Céu dos gatos.
Fiquei triste com a notícia ... recebia-a há poucos minutos ...
Morreu de manhã de paragem cardíaca ...
Tinha 13 anos ... nasceu a 25 de Abril de 1993 ...


* Este post foi actualizado hoje, dia 14 de Outubro de 2006 a pedido de R.R. que me pediu que colocasse antes uma foto do Gris.

3.10.06

Nova Terminologia Amorosa

(Duas adolescentes melancólicas, 13 ou 14 anos, no pátio da escola:)
- Tenho tido bué de problemas com ele... bué de chatices...
- Quanto melhor tratamos um damo, mais ele nos despreza!
(Novas palavras, leis ancestrais.)

2.10.06

Metamorfose (versão com penas)


Pousou as chaves, tirou o casaco e olhou para as janelas, onde a cidade anoitescorria. Imaginou-se a viver rodeado de água por todos os lados. Descalçou os sapatos e foi aquecer a sopa para o jantar, soltando, de quando em vez, um discreto quá.

1.10.06

Nova Terminologia Linguística

Tu devolveste-me as chaves de casa, eu deixei cair as chaves do meu carro no Teu carro. Mas nem eram as chaves da minha casa, nem Tu e Teu apontam para o mesmo referente. Na gramática, chama-se a isto deixis (do grego apontar). Na vida, são vocês.

A Barriga de um Arquitecto

Sentado num banco almofadado da FNAC, ele olhava com atenção as fotografias de um álbum cujo título era Eros. Na capa via-se um torso feminino, nu e muito branco, e uma mão masculina, morena, a cobrir a zona púbica desse corpo branco. Quando o telemóvel tocou, ele respondeu: "Estou na FNAC a ver um livro de arquitectura. Precisam mesmo de mim aí?..."

Os Manequins

Elas entram nas lojas e mexem e desdobram as roupas; experimentam; despem e vestem; olham-se nos espelhos dos cubículos dos provadores. Eles ficam cá fora, debruçados no varandim do primeiro piso do Centro Comercial. E, enquanto esperam, fumam. Olham para a domingueira corrente humama lá em baixo. Depois levantam os olhos e vêem os manequins das montras que parecem esperar que alguém se lembre de os transformar em seres de alma, carne e osso, capazes de viver, amar e sofrer. No fim, elas saem das lojas e trazem mais um saco a juntar a outros. Avançam, lado a lado, pelos corredores, deixando para trás os manequins e os seus próprios reflexos entrevistos nos grandes vidros das montras.

Digestivo

Gosto deste restaurante do bairro, muito familiar. Ontem almoçei dourada com legumes. Hoje fui no cozido, apostando tudo nas couves, evitando repetir enchidos, resistindo à tentação de esvaziar o meio jarro do bom tinto da casa. É um daqueles sítios onde me sinto bem, quase em casa. Quando chego, os empregados saúdam-me, estendem a mão. “Como vai? Está sózinho?”. Que sim, pode ser na mesa junto à janela, inexplicavelmente tapada por um reposteiro. Espaço reservado, acolhedor. Telemóvel em silêncio, as gordas do jornal e logo a seguir a travessa, bem aviada. Olho em volta e descubro rostos conhecidos: famílias e amigos no ritual de almoçar fora, ao domingo. Saboreio. Quarenta minutos depois, paga a conta, recolho os pertences e dirigo-me para a porta. Um dos empregados despede-se e pergunta, com ar preocupado: “A esposa, está bem?”. Ainda com a boca-café respondo, surpreendendo-me, quase sem hesitar: “Está bem, tem andado por fora”. Familiar não quer dizer íntimo, não é?